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Tempo: Excertos de SANTO AGOSTINHO. Confissões. SP: Editora Nova Cultural, 1999.

Excertos de: SANTO AGOSTINHO. Confissões. SP: Editora Nova Cultural, 1999.

 

14    O QUE É O TEMPO?

17. Não houve tempo nenhum em que não fizésseis alguma coisa, pois fazíeis o próprio tempo.

Nenhuns tempos Vos são coeternos, porque Vós permaneceis imutável, e se os tempos assim permanecessem, já não seriam tempos. Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente.

De que modo existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro -, se o passado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas eternidade. Mas se o presente, para ser tempo, tem necessariamente de passar para o pretérito, como podemos afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de existir? Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe, porque tende a não ser?[1]

15     AS TRÊS DIVISÕES DO TEMPO

18. Contudo, dizemos tempo longo ou breve, e isto, só o podemos afirmar do futuro ou do passado. Chamamos “longo” ao tempo passado, se é anterior ao presente, por exemplo, cem anos. Do mesmo modo dizemos que o tempo futuro é “longo”, se é posterior ao presente também cem anos. Chamamos “breve” ao passado, se dizemos, por exemplo, “há dez dias”; e ao futuro, se dizemos “daqui a dez dias”. Mas como pode ser breve ou longo o que não existe? Com efeito, o passado já não existe e o futuro ainda não existe. Não digamos: “é longo”; mas digamos do passado: “foi longo”; e do futuro: “será longo”.

Nesta questão, escarnecerá do homem a vossa Verdade, ó meu Deus e minha Luz? O tempo longo, já passado, foi longo depois de passado ou quando ainda era presente? Só então podia ser longo (nesse momento presente), quando existia alguma coisa capaz de ser longa. O passado já não existia; portanto não podia ser longo aquilo que totalmente deixara de existir.

Não digamos pois: “o tempo passado foi longo”, porque não encontraremos aquilo que tivesse podido ser longo, visto que já não existe desde o instante em que passou. Digamos antes: “aquele tempo presente foi longo”, porque só enquanto foi presente é que foi longo. Ainda não tinha passado ao não-ser, e portanto existia uma coisa que podia ser longa. Mas, logo que passou, simultaneamente deixou de ser longo, porque deixou de existir.

19. Vejamos, portanto, ó alma humana, se o tempo presente pode ser longo. Foi-te concedida a prerrogativa de perceberes e medires a sua duração. Que me responderás? Porventura cem anos presentes são muito tempo? Considera primeiro se cem anos podem ser presentes. Se o primeiro ano está decorrendo, este é presente, mas os outros noventa e nove são futuros, e portanto ainda não existem. Se está decorrendo o segundo ano, um é passado, outro presente e os restantes futuros. Se apresentarmos como presente qualquer dos anos intermediários da série centenária, notamos que os que estão antes dele são passados, e os que estão depois são futuros. Pelo que cem anos não podem ser presentes.

Examina, pelo menos, se o ano que está transitando pode ser presente. Com efeito, se o primeiro mês está passando, os outros são futuros. Se estamos no segundo mês, o primeiro já passou e os outros ainda não existem. Logo, nem o ano que está decorrendo pode ser todo presente, e, se não é todo presente, não é um ano presente. O ano compõe-se de doze meses; um mês qualquer é presente enquanto decorre; os outros são passados ou futuros. Nem sequer, porém, o mês que está decorrendo é presente, mas somente o dia. Se é o primeiro dia, todos os outros são futuros; se é o último, todos os outros são passados; se é um dia intermediário, está entre dias passados e futuros.

20. O tempo presente – o único que julgávamos poder chamar longo -, ei-lo reduzido apenas ao espaço de um só dia! Mas discutamos também acerca dele, porque nem sequer um dia é inteiramente presente.

O dia e a noite compõem-se de vinte e quatro horas, entre as quais a primeira tem as outras todas como futuras, e a última tem a todas como passadas. Com respeito a qualquer hora intermediária são pretéritas aquelas que a precedem, e futuras as subsequentes. Uma hora compõe-se de fugitivos instantes. Tudo o que dela já debandou é passado. Tudo o que ainda resta é futuro. Se pudermos conceber um espaço de tempo que não seja suscetível de ser subdividido em mais partes, por mais pequeninas que sejam, só a esse podemos chamar tempo presente. Mas este voa tão rapidamente do futuro ao passado, que não tem nenhuma duração. Se a tivesse, dividir-se-ia em passado e futuro. Logo, o tempo presente não tem nenhum espaço.

Onde existe portanto o tempo que podemos chamar longo? Será o futuro? Mas deste tempo não dizemos que é longo, porque ainda não existe. Dizemos: “será longo”. E quando será? Se esse tempo ainda agora está para vir, nem então será longo, porque ainda não existe nele aquilo que seja capaz de ser longo. Suponhamos que, ao menos, no futuro será longo. Mas só o poderá começar a ser no instante em que ele nasce desse futuro – que ainda não existe – e se torna tempo presente, porque só então possui capacidade de ser longo. Mas com as palavras que acima deixamos transcritas o tempo presente clama que não pode ser longo.

 

16      PODE MEDIR-SE O TEMPO

21. E contudo, Senhor, percebemos os intervalos dos tempos, comparamo-los entre si e dizemos que uns são mais longos e outros são mais breves. Medimos também quando este tempo é mais comprido ou mais curto do que outro, e respondemos que um é duplo ou triplo, ou que a relação entre eles é simples, ou que este é tão grande como aquele.

Mas não medimos os tempos que passam, quando os medimos pela sensibilidade. Quem pode medir os tempos passados que já não existem ou os futuros que ainda não chegaram? Só se alguém se atrever a dizer que pode medir o que não existe! Quando está decorrendo o tempo, pode percebê-lo e medi-lo. Quando, porém, já tiver decorrido, não o pode perceber nem medir, porque esse tempo já não existe.[2]

17      ATRAVÉS DO PRETÉRITO E DO FUTURO

22. Não afirmo, ó Pai. Apenas pergunto. Meu Deus, assisti-me e dirigi-me!

Quem se atreveria a dizer-me que não há três tempos, conforme aprendemos na infância e às crianças o ensinamos: o pretérito, o presente e o futuro? Existirá somente o presente, visto que os outros dois não existem? Ou eles também existem, e então o tempo procede de algum retiro oculto, quando de futuro se faz presente? Entra o tempo em outro esconderijo, quando de presente se faz passado? Onde é que os adivinhos viram as coisas futuras que vaticinaram, se elas ainda não existem? Efetivamente, não é possível ver o que não existe. E os que narram fatos passados, sem dúvida não os poderiam veridicamente contar, se os não vissem com a alma. Ora, se esses fatos passados não existissem, de modo nenhum poderiam ser vistos. Existem, portanto, fatos futuros e pretéritos.

18       O VATICÍNIO DO FUTURO PELO PRESENTE

23. Permiti, Senhor, minha Esperança, que eu leve mais além as minhas investigações. Não se perturbe a minha atenção!

Se existem coisas futuras e passadas, quero saber onde elas estão. Se ainda o não posso compreender, sei todavia que em qualquer parte onde estiverem, aí não são futuras nem pretéritas, mas presentes. Pois, se também aí são futuras, ainda lá estão; e, se nesse lugar são pretéritas, 2 lá não estão. Por conseguinte, em qualquer parte onde estiverem, quaisquer que elas sejam, não podem existir senão no presente. Ainda que se narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígios. Por conseguinte, a minha infância, que já não existe presentemente, existe no passado que já não é. Porém a sua imagem, quando a evoco e se torna objeto de alguma descrição, vejo-a no tempo presente, porque ainda está na minha memória.

Confesso-Vos, meu Deus, que não sei se a causa pela qual se prediz o futuro equivale ao fenômeno de se apresentarem ao espírito as imagens já existentes das coisas que ainda não existem. Sei com certeza que nós, a maior parte das vezes, premeditamos as nossas ações futuras, e essa premeditação é presente, ao passo que a ação premeditada ainda não existe, porque é futura. Quando empreendermos e começarmos a realizar o que premeditamos, então essa ação existirá, porque já não é futura, mas presente. De qualquer modo que suceda este pressentimento oculto das coisas futuras, não podemos ver senão o que possui existência. Ora, o que já existe não é futuro, mas presente. Por conseguinte, quando se diz que se vêem os acontecimentos futuros, não se vêem os próprios acontecimentos ainda inexistentes – isto é, os fatos futuros -, mas sim as suas causas, ou talvez os seus prognósticos já dotados de existência. Portanto, com relação aos que os vêem, esses acontecimentos não são futuros, mas sim presentes.

24. Por esses vaticínios é apenas profetizado o futuro já preconcebido na alma. Esses vaticínios, repito, já existem, e aqueles que predizem o futuro já os vêem como presentes junto a si.

Tomemos algum exemplo da multidão tão numerosa de fenômenos.

Vejo a aurora e prognostico que o sol vai nascer. O que vejo é presente, o que anuncio é futuro. Não é o sol que é futuro, porque esse já existe, mas sim o seu nascimento, que ainda se não realizou. Contudo, não o poderia prognosticar sem conceber também, na minha imaginação, o mesmo nascimento, como agora o faço quando isso declaro. Mas nem aquela aurora que eu vejo no céu e que precede o aparecimento do sol, nem aquela imagem formada no meu espírito são o mesmo nascimento do sol, ainda que, para se predizer este futuro, se devam enxergar a aurora e a sua imagem como presentes.

Por conseguinte, as coisas futuras ainda não existem; e se ainda não existem, não existem presentemente. De modo algum podem ser vistas, se não existem. Mas podem ser prognosticadas pelas coisas presentes que já existem e se deixam observar.

19          ORAÇÃO AO SENHOR DO FUTURO

25. Declarai-nos, pois, ó Soberano das vossas criaturas, de que modo ensinais às almas os acontecimentos futuros, pois não se pode duvidar de que os revelastes aos vossos profetas. De que modo ensinais as coisas futuras, ó Senhor para quem não há futuro? Ou antes, de que modo ensinais algumas coisas presentes acerca do futuro? Pois o que não existe também não pode, evidentemente, ser ensinado!

Este modo misterioso está demasiado acima da minha inteligência. Supera as minhas forças. Por mim não poderei atingi-lo. Porém, podê-lo-ei por Vós, quando mo concederdes, ó doce luz dos ocultos olhos da minha alma.

20       CONCLUSÃO DESTA ANÁLISE: NOVA TERMINOLOGIA

26. O que agora claramente transparece é que nem há tempos futuros nem pretéritos. É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras. Se me é lícito empregar tais expressões, vejo então três tempos e confesso que são três.

Diga-se também que há três tempos: pretérito, presente e futuro, como ordinária e abusivamente se usa. Não me importo nem me oponho nem critico tal uso, contanto que se entenda o que se diz e não se julgue que aquilo que é futuro já possui existência, ou que o passado subsiste ainda. Poucas são as coisas que exprimimos com terminologia exata. Falamos muitas vezes sem exatidão, mas entende-se o que pretendemos dizer!

21       NOVAS DIFICULDADES: COMO PODE MEDIR-SE O TEMPO?

27. Disse há pouco que medimos os tempos que passam, de modo que podemos afirmar: este espaço de tempo é duplo de tal outro, ou é-lhe equivalente, ou este é igual àquele. Do mesmo modo exprimimos outras subdivisões do tempo, se mais alguma outra medida pudermos enunciar. Por conseguinte, como dizia, medimos os tempos ao decorrerem. E se alguém me disser: “Como o sabeis?”, responder-lhe-ei: “Sei-o porque os medimos”. Não medimos o que não existe. Ora, as coisas pretéritas ou futuras não existem. Como medimos nós o tempo presente, se não tem espaço? Mede-se quando passa. Porém, quando já tiver passado, não se mede, porque já não será possível medi-lo.

Mas de onde se origina ele? Por onde e para onde passa, quando se mede? De onde se origina ele senão do futuro? Por onde caminha, senão pelo presente? Para onde se dirige, senão para o passado? Portanto, nasce naquilo que ainda não existe, atravessando aquilo que carece de dimensão, para ir para aquilo que já não existe.

Porém, que medimos nós senão o tempo em algum espaço? Não diríamos tempos simples, duplos, triplos e iguais ou com outras denominações análogas, se os não considerássemos como espaços de tempos. Em que espaço medimos o tempo que está para passar? Será no futuro, de onde parte? Mas nós não podemos medir o que ainda não existe! Será no presente, por onde parte? Mas nós não medimos o que não tem nenhuma extensão! Será no passado, para onde parte? Mas, para nós, não é mensurável o que já não existe!

23        O TEMPO É UMA CERTA DISTENSÃO

29. Ouvi dizer a um homem instruído que o tempo não é mais que o movimento do Sol, da Lua e dos astros.[3]Não concordei. Porque não seria antes o movimento de todos os corpos? Se os astros parassem e continuasse a mover-se a roda do oleiro, deixaria de haver tempo para medirmos as suas voltas? Não poderíamos dizer que estas se realizavam em espaços iguais, ou, se a roda umas vezes se movesse mais devagar, outras depressa, não poderíamos afirmar que umas voltas demoravam mais, outras menos? Ou, ao dizermos isto, não falamos nós no tempo, e não há nas nossas palavras sílabas longas e sílabas breves, assim chamadas, porque umas ressoam durante mais tempo e outras durante menos tempo? Fazei, meu Deus, com que os homens conheçam por meio deste simples exemplo as noções comuns das coisas grandes e pequenas.

Há estrelas e luzeiros no céu que servem de sinais, indicam as estações, as horas e os anos. Com certeza, existem. Mas nem eu afirmo que uma volta daquela roda de madeira represente um dia, nem aquele sábio se atreverá a dizer que esse giro não representa um determinado tempo.

30. Desejo saber a força e natureza do tempo com que medimos o movimento dos corpos e dizemos, por exemplo, que tal movimento é duas vezes mais longo no tempo do que outro qualquer. Prossigamos na investigação: chamamos dia não somente à demora do Sol sobre a Terra, pela qual se diferencia o dia e a noite, mas também ao giro completo que o Sol descreve do Oriente ao Oriente. Por isso dizemos: “Passaram-se tantos dias”. Entendemos também as respectivas noites, sem enumerar à parte os seus espaços. Portanto, já que o movimento do Sol e o seu percurso do Oriente ao Oriente completam um dia, desejava saber se é o movimento que constitui o dia, ou se é a duração em que se realiza esse movimento, ou se são estas duas coisas conjuntamente.

Se fosse o movimento do Sol que constituísse o dia, teríamos um dia, ainda que o Sol completasse a sua carreira num tão pequeno espaço de tempo quanto é o de uma só hora. Se fosse a duração do percurso do Sol que constituísse o dia, não haveria dia, se de um nascer a outro nascer do Sol houvesse a breve duração de tempo quanto é o de uma só hora. Mas seria preciso que o Sol desse vinte e quatro voltas para completar um dia. Se fossem o movimento do Sol e a duração desse movimento a dar origem ao dia, este não se poderia apelidar com tal nome, se o Sol perfizesse o seu giro completo no espaço de uma hora. Também o não chamaríamos dia, se se passasse tanto tempo estando o Sol parado, quanto este costuma gastar no seu percurso de uma manhã a outra manhã.

Agora não procuro averiguar em que consiste aquilo que apelidamos dia, mas sim o que seja o tempo, unidade pela qual, medindo o trajeto do Sol, diríamos que o completou em menos de metade do espaço do tempo costumado, se acaso o perfizesse no espaço de tempo quanto é aquele em que decorrem doze horas. Comparando as duas durações, diremos que uma é simples e outra dupla, ainda que o Sol demorasse umas vezes o tempo simples, outras vezes o dobro, no seu percurso do Oriente ao Oriente.[4]

Ninguém me diga, portanto, que o tempo é o movimento dos corpos celestes. Quando, com a oração de Josué, o Sol parou, a fim de ele concluir vitoriosamente o combate, o Sol estava parado, mas o tempo caminhava.[5]Este espaço de tempo foi o suficiente para executar e para pôr termo ao combate. Vejo portanto que o tempo é uma certa distensão. Vejo, ou parece-me que vejo? Só Vós, Luz e Verdade, mo demonstrareis.[6]

24      O TEMPO NÃO É O MOVIMENTO DOS CORPOS

31. Se alguém me disser que o tempo é o movimento de um corpo, mandar-me-eis estar de acordo? Não mandareis. Ouço dizer que os corpos só se podem mover no tempo. Vós mesmo o afirmais. Mas não ouço dizer que o tempo é esse movimento dos corpos. Não o dizeis. Quando um corpo se move, é com o tempo que meço a duração desse movimento, desde que começou até acabar. Se o não vi principiar a mover-se e persevera de modo a não poder notar quando termina, só me é permitido medir a duração do movimento desde o instante em que comecei a vê-lo até que o deixei de ver. Se o presencio por longo espaço, não posso dizer quanto tempo demorou, mas somente que demorou muito tempo, porque o “quanto” só por comparação o podemos avaliar. Dizemos, por exemplo, que “isto durou tanto quanto aquilo” , que “isto durou o dobro daquilo” e de modo semelhante, nos outros casos. Se pudermos observar de que lado vem o corpo que se move e para onde vai, ou se as suas partes se movem como um torno, poderemos dizer quanto tempo durou de um lugar a outro o movimento deste corpo ou das partes.

Portanto, sendo diferentes o movimento do corpo e a medida da duração do movimento, quem não vê qual destas duas coisas se deve chamar de tempo? Num corpo que umas vezes se move com diferente velocidade e outras vezes está parado, medimos não somente o seu movimento mas também o tempo que está parado. Dizemos: “Esteve tanto tempo parado como a andar”, ou “esteve parado o dobro ou o triplo do tempo em que esteve em movimento”, e assim por diante. Ainda no cálculo exato ou aproximativo, costuma dizer-se “mais” e “menos”.

Portanto, o tempo não é o movimento dos corpos.

26        NOVA TEORIA SOBRE O TEMPO

33. Acaso minha alma não Vos engrandece ao declarar-Vos, com verdade, que meço os tempos? Efetivamente, meu Deus, eu meço-os, e não sei o que meço. Meço o movimento de um corpo com o tempo. Não poderei eu medir o tempo do mesmo modo? Ser-me-á possível medir o movimento de um corpo enquanto ele perdura, e quanto o corpo leva em chegar de um lugar a outro sem que meça o tempo em que se move?

Com que posso eu medir o tempo? E com um espaço mais breve de tempo que calculamos outro mais longo, do mesmo modo que medimos o comprimento de um caibro com o côvado? Igualmente vemos que, pela duração de uma sílaba breve, se avalia a de uma sílaba longa, e afirmamos que a duração de uma é dupla da outra. Assim, medimos a extensão de um poema pelo número de versos, a grandeza dos versos pela dos pés, a dos pés pela duração das sílabas, as sílabas longas pelas breves, e não pelo número de páginas, pois deste modo mediríamos os espaços e não os tempos. Conforme as palavras passam e nós as pronunciamos, dizemos: “Este poema é extenso, pois se compõe de tantos versos; os versos são compridos porque constam de tantos pés; os pés também são compridos pois se estendem por tantas sílabas; estas são longas porque são o dobro das breves”.

Mas nem assim alcançamos medida certa para o tempo, porque pode suceder que um verso menos extenso ressoe por maior espaço de tempo, se se pronuncia mais lentamente do que outro mais longo, se é proferido mais depressa. O mesmo sucede aos poemas, pés e sílabas.

Pelo que, pareceu-me que o tempo não é outra coisa senão distensão; mas de que coisa o seja, ignoro-o.[7]Seria para admirar que não fosse a da própria alma.[8]Portanto, dizei-me, eu Vo-lo suplico, meu Deus, que coisa meço eu, quando declaro indeterminadamente: “Este tempo é mais longo do que aquele”, ou quando digo determinadamente “Este é duplo daquele outro?” Sei perfeitamente que meço o tempo, mas não o futuro, porque ainda não existe. Também não avalio o presente, pois não tem extensão, nem o passado, que não existe. Que meço eu então? O tempo que presentemente decorre e não o que já passou? Assim o tinha dito eu.

27        UMA EXPERIÊNCIA

34. Insiste, ó minha alma, e redobra esforçadamente de atenção: “Deus nos ajudará, pois Ele nos criou e não fomos nós que nos criamos” .[9]

Fixa o olhar onde desponta o amanhecer da Verdade. Supõe, por exemplo, que a voz de um corpo começa a ressoar, ecoa, continua a ecoar e cala-se. Fez-se silêncio… a voz esmoreceu… Já não é voz. Era futura antes de ecoar e não podia ser medida porque ainda não existia, e agora também não é possível medi-la porque já se calou. Nesses instantes em que ressoava era comensurável, porque então existia uma coisa suscetível de ser medida. Mas mesmo nesses momentos não era estável. Ia esmorecendo e passava. Não seria por acaso esta instabilidade ou movimento o que a tornava mensurável? Com efeito, ao esmorecer, estendia-se por um espaço de tempo pretérito onde seria possível medi-la, já que o presente não tem nenhuma extensão.

Porém, se então era possível medi-la, suponhamos que outra voz começou a ressoar e ainda ressoa numa vibração contínua e de igual intensidade. Meçamo-la enquanto ela ressoa, pois, desde que cesse de vibrar, já será pretérita e não a poderemos medir. Meçamo-la por conseguinte e calculemos a sua duração. Todavia, ainda soa, e não a podemos avaliar senão desde o seu princípio – em que começou a ressoar – até o fim, quando emudecer, porque todo o intervalo se mede desde um certo ponto até um limite determinado. Por este motivo, a voz que ainda não terminou não é suscetível de ser comensurada, de modo que possamos calcular a sua longa ou breve duração. Nem podemos afirmar que seja igual a alguma outra, ou que a sua relação seja simples ou dupla, nem estabelecer qualquer outra proporção. Logo que essa voz cesse, fica destituída de existência. Então, de que modo poderá ser avaliada? Com efeito, medimos os tempos, mas não os que ainda não existem ou já passaram, nem os que não têm duração alguma, nem os que não têm limites. Não medimos, por conseguinte, os tempos futuros nem os passados, nem os presentes, nem os que estão passando. Contudo, medimos os tempos!

35. Este verso “Deus Creator omnium”,de oito sílabas, vai-se alternando com sílabas breves e longas. Quatro breves: a primeira, terceira, quinta e sétima. Estas são simples, comparadas com as quatro longas: a segunda, quarta, sexta e oitava. Cada uma destas tem o dobro de tempo com relação às outras. Assim o noto pelo testemunho dos sentidos. Segundo o que estes me revelam, meço a sílaba longa pela breve e vejo que a longa contém duas vezes a breve. Mas quando soa uma após a outra, se a primeira é breve e a segunda é longa, como hei de reter a breve?

Como hei de aplicar a breve à longa para medir esta, de modo a poder averiguar que a longa tem o dobro de duração? Não é verdade que a longa só começa a ressoar no momento em que a breve tenha cessado?

Também não meço esta mesma sílaba longa enquanto é presente, pois só me é possível medi-la depois de terminada. E, uma vez terminada, passou. Que medirei eu, portanto? Onde está a sílaba breve que me serve de medida? Onde está a longa para eu a medir? Ambas ressoaram, voaram, foram passando e já não existem. Meço-as e, com a certeza que me pode dar a percepção de um sentido, respondo confiadamente que no espaço de tempo uma é simples, outra é dupla. Nem posso dizê-lo senão porque passaram e terminaram. Não as meço, portanto, a elas, que já não existem, mas a alguma coisa delas que permanece gravada na minha memória.

36. Em ti, ó meu espírito, meço os tempos! Não queiras atormentar-me, pois assim é. Não te perturbes com os tumultos das tuas emoções. Em ti, repito, meço os tempos. Meço a impressão que as coisas gravam em ti à sua passagem, impressão que permanece, ainda depois de elas terem passado. Meço-a a ela enquanto é presente, e não àquelas coisas que se sucederam para a impressão ser produzida. É a essa impressão ou percepção que eu meço, quando meço os tempos. Portanto, ou esta impressão é os tempos ou eu não meço os tempos.[10]

Quando medimos os silêncios e dizemos que aquele silêncio durou o mesmo tempo que aquela voz, não dirigimos o pensamento para a duração da voz, como se ressoasse ainda, a fim de podermos avaliar no espaço de tempo o intervalo dos silêncios? Com efeito, quando, sem abrir a boca nem pronunciar palavra, fazemos mentalmente poemas, versos ou qualquer discurso, ou medimos quaisquer movimentos, comparamo-los pelos espaços de tempo e achamos a relação de uns com outros como se os pronunciássemos em voz alta.

Se alguém quisesse soltar uma palavra um pouco mais longa e regulasse com o pensamento a sua duração, esse delimitaria o espaço de tempo em silêncio. Confiando-o à memória, começaria a produzir aquela palavra que soa, até atingir o limite proposto. Mas essa voz ressoa e ressoará, pois a parte que esmoreceu sem dúvida já ressoou e o que resta soará ainda. Vai assim emudecendo pouco a pouco, enquanto a presente atenção do espírito vai lançando o futuro para o passado. Com a diminuição do futuro, o passado cresce até ao momento em que seja tudo pretérito, pela consumição do futuro.

28         O TEMPO E O ESPÍRITO

37. Mas como diminui ou se consome o futuro, se ainda não existe? Ou como cresce o pretérito, que já não existe, a não ser pelo motivo de três coisas se nos depararem no espírito onde isto se realiza: expectação, atenção e memória? Aquilo que o espírito espera passa através do domínio da atenção para o domínio da memória.

Quem, por conseguinte, se atreve a negar que as coisas futuras ainda não existem? Não está já no espírito a expectação das coisas futuras? Quem pode negar que as coisas pretéritas não existem? Mas está ainda na alma a memória das coisas passadas. E quem contesta que o presente carece de espaço, porque passa num momento? Contudo, a atenção perdura, e através dela continua a retirar-se o que era presente. Portanto, o futuro não é um tempo longo, porque ele não existe: o futuro longo é apenas a longa expectação do futuro. Nem é longo o tempo passado porque não existe, mas o pretérito longo outra coisa não é senão a longa lembrança do passado.

38. Vou recitar um hino que aprendi de cor. Antes de principiar, a minha expectação estende-se a todo ele. Porém, logo que o começar a minha memória dilata-se, colhendo tudo o que passa de expectação para o pretérito. A vida deste meu ato divide-se em memória, por causa do que já recitei, e em expectação, por causa do que hei de recitar. A minha atenção está presente e por ela passa o que era futuro para se tornar pretérito. Quanto mais o hino se aproxima do fim tanto mais a memória se alonga e a expectação se abrevia, até que esta fica totalmente consumida, quando a ação, já toda acabada, passar inteiramente para o domínio da memória.[11]

Ora, o que acontece em todo o cântico, isso mesmo sucede em cada uma das partes, em cada uma das sílabas, em cada ação mais longa – da qual aquele cântico é talvez uma parte – e em toda a vida do homem, cujas partes são os atos humanos. Isto mesmo sucede em toda a história dos filhos dos homens,[12]da qual cada uma das vidas individuais é apenas uma parte.

Excertos de: SANTO AGOSTINHO. Confissões. SP: Editora Nova Cultural, 1999.


[1] O tempo é um ser de razão com fundamento na realidade. Santo Agostinho estuda o problema do tempo apenas sob o aspecto psicológico: como é que nós o apreendemos. Não o estuda sob o aspecto ontológico: como é em si mesmo. Para este último caso, teria de o considerar indivisível. (N. do T.)

[2] O tempo não é apenas uma sucessão de instantes separados. É um contínuo, e, como tal, é indivisível, O tempo, para ser estudado na sua metafísica, não se deve dividir no “antes e no “depois , mas considerar-se na sua síntese de continuidade. (N. do T.)

[3] Assim o afirmava Eratóstenes: “O tempo é o curso do Sol”. Igual teoria se atribui a Platão no livro Timeu. A este se refere o texto. (N. do T.)

[4] Os romanos mediam o dia de um nascer do Sol até ao outro nascer do Sol. Os judeus, ao contrário, contavam-no de um pôr do Sol até ao outro pôr do Sol. (N. do T.)

[5] Santo Agostinho pretende distinguir o tempo astronômico do tempo metafísico e do tempo psicológico. Aqui refere-se ao astronômico. (N. do T.)

[6] O tempo psicológico é a impressão do antes e depois que as coisas gravam no espírito. E o sentimento de presença das imagens que se sucedem, sucederam ou hão de suceder, referidas a uma anterioridade. (N. do T.)

[7] Santo Agostinho não emprega o termo espacial de extensão, para se referir ao tempo. Em vez daquele vocábulo, usa distensão. (N. do T.)

[8] No conceito de tempo há dois elementos: um transitório (sucessão) e outro permanente (duração). O tempo psicológico não é mais do que a percepção dessa sucessão contínua no campo da consciência com aspecto de localização e de anterioridade. (N. do T.)

[9] SI 61, 9; 99, 3.

[10] É mérito de Santo Agostinho ter posto em relevo, de maneira definitiva, o caráter psicológico do tempo, o seu pertencer à consciência (J. M. Le Blond, 5. J., Les Conversions de Saint Augustin, Paris. 1950, p. 256). (N. do T.)

[11] A atenção na sua função de síntese liga o passado ao futuro. (N. do T.)

[12] S130, 20.

O TEXTO NARRATIVO REIS, C. LOPES, A. C. M. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Almedina, 2000. Adaptado por Nílvia Pantaleoni

O TEXTO NARRATIVO

REIS, C. LOPES, A. C. M. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Almedina, 2000.

Adaptado por Nílvia Pantaleoni

INTRODUÇÃO       O aprimoramento das competências – linguística, textual, comunicativa, entre outras – que comprovadamente o ser humano tem é essencial para as atividades que são propostas neste semestre. Mais do que aprender nomes e relacioná-los a conceitos o que se pede é que se ponha em prática o que já se sabe e o que se descobre a partir de leituras, discussões e reflexões. É fácil? Certamente que não, contudo o resultado é compensador. Estamos estudando o processo, estamos também sendo agentes desse processo e, no final, teremos o produto: o texto narrativo-descritivo individual.

Alguns conceitos básicos a respeito do texto narrativo serão aqui abordados. Eles servem para situá-lo tanto como leitor crítico quanto como autor consciente das estratégias que já possui pelo fato de viver em uma comunidade sócio-linguística-cultural inserida num determinado tempo e num espaço também determinado. Estudaremos os seguintes conceitos: competência narrativa; macroestrutura textual e os conceitos relacionados à macroestrutura – superestrutura e microestrutura; ação e história; autor e narrador; focalização; narração; tempo da narração; espaço e personagem.

COMPETÊNCIA NARRATIVA      A noção de competência narrativa surge como extensão teórica da noção de competência linguística formulada por Chomsky. Para ele, competência linguística significa o conhecimento que o falante/ouvinte possui da sua língua, conhecimento intuitivo representável sob forma de um conjunto finito de regras interiorizadas que, a partir de um número finito de elementos, geram (enumeram explicitamente) um número indefinido de frases.

Esta noção sofreu uma primeira extensão no âmbito da linguística textual. De fato, se consideramos que o signo linguístico originário é o texto e não a frase, é então possível falar-se de uma competência textual, entendida como um conjunto de regras interiorizadas que permitem ao falante/ouvinte produzir e compreender uma infinidade de textos. A competência textual transcende a competência linguística, na medida em que inclui regras translinguísticas (por exemplo, de ordem comunicativo-pragmática, ligadas à interação social). Neste sentido, a competência narrativa é um componente da competência textual que é mais ampla.

A proposta teórica da competência narrativa pode ser empiricamente validada. Várias pesquisas realizadas apontam para a existência de um esquema narrativo comum que preside à produção de textos narrativos no seio de uma mesma comunidade. Por outro lado, experiências levadas a cabo sobre os mecanismos de memorização, reprodução e resumo de textos narrativos corroboram a hipótese de que há, de fato, um esquema interiorizado, uma espécie de grade de expectativa vazia que vai sendo preenchida à medida que se processa a leitura ou audição de textos narrativos concretos. Estes esquemas narrativos globais, denominados superestruturas, são convencionais: incluem um certo número de categorias e de regras culturalmente adquiridos pelos membros de uma comunidade.

MACROESTRUTURA TEXTUAL         O nível mais profundo da estrutura textual organiza-se de modo não linguístico e corresponde a um esquema global composto por um conjunto de categorias hierarquicamente organizadas que se combinam mediante certas regras. Cada tipo de texto obedece a esquemas específicos de articulação sintática global, isto é, cada tipo de texto é sustentado por uma superestrutura. No caso específico da superestrutura narrativa ou do esquema narrativo, subjaz uma organização que comporta três categorias fundamentais: exposição, complicação e resolução.

Já a macroestrutura de um texto é uma representação abstrata da estrutura global de significado de um texto e possui natureza linguística. É nesse nível que se coloca o problema da coerência global do texto. Trata-se, pois, de uma noção que define em termos teóricos o sentido global do texto intuitivamente apreendido.

A totalidade de significação formalmente contida na macroestrutura resulta da integração sucessiva das representações semânticas parciais que correspondem às frases linearmente ordenadas do texto. É possível reconhecer níveis intermediários de macroestruturas, uma vez que num texto há conjuntos de frases que formam um bloco consistente, dando origem a sequências que funcionam como partes interligadas de um todo a que se vinculam: esse todo é a macroestrutura mais geral do texto, responsável pela projeção e articulação linear das frases que integram a superfície textual. Por outras palavras, a macroestrutura que contém a informação essencial do texto é comparável a um núcleo semântico a partir do qual, mediante a aplicação de certas regras de projeção, tem origem o conjunto de frases que perfazem a superfície textual, e às quais se dá o nome de microestruturas textuais. A microestrutura textual é, pois, o conjunto formado pelas frases que integram a superfície textual linear. Sendo a noção de macroestrutura de ordem semântica, ela vai ser traduzida em termos de proposições. Essas proposições também chamadas macroproposições – resultam da redução/condensação das representações semânticas agregadas a cada frase da superfície textual. Há um certo número de regras que reduzem e integram a um nível superior de representação a informação semântica do texto. São regras que suprimem tudo o que é acidental e supérfluo e definem o que é fundamental no conteúdo do texto considerado como um todo. Ao serem acionadas, selecionam, generalizam e integram numa representação hiperonímica os significados locais das microestruturas. Por exemplo: “Fui à estação”; “comprei um bilhete”; “dirigi-me à plataforma”; “subi no trem”: esta sequência de frases pode ser representada a um nível superior pela proposição “Fiz uma viagem de trem”, depois de aplicadas as regras de redução da informação semântica. Experiências realizadas na área da psicologia cognitiva mostraram que as informações armazenadas na memória correspondem a macroproposições com valor estrutural que traduzem o conteúdo global do texto.

Todos os modelos narratológicos se construíram tendo em vista a exploração das macroestruturas do texto narrativo. Formalizar a sintaxe narrativa ou explicitar a lógica narrativa é tentar articular em determinadas categorias o conteúdo global do texto, a sua macroestrutura. A macroestrutura de um texto narrativo preserva as características do modo narrativo: assim, comporta sempre uma macroproposição (exposição – situação inicial) que identifica o agente principal e descreve o estado inicial, um conjunto de macroproposições que traduzem um processo dinâmico (complicação – ações – resolução), e uma macroproposição (situação final) que representa o estado final.

AÇÃO      Basicamente, na narrativa tradicional, a ação é construída em função de uma procura e da resolução de certos problemas. Parte-se do princípio de que todo problema deve ser resolvido, que as coisas devem chegar de qualquer modo a uma solução. Como componente fundamental da estrutura da narrativa, a ação integra-se no domínio da história e remete a diversos outros conceitos que com ela se relacionam de forma mais ou menos estreita: a intriga, o tempo, a composição da história. Ela deve ser entendida como um processo de desenvolvimento de eventos singulares, podendo conduzir ou não a um desenlace irreversível.

Para sua concretização, a ação depende da interação de, pelo menos, três componentes: um (ou mais) sujeito(s) diversamente empenhado(s) na ação, um tempo determinado em que ela se desenrola e as transformações evidenciadas pela passagem de certos estados a outros estados.

Para a semiótica narrativa, a ação – fazer convertido em processo – é um programa narrativo «vestido», estando nela o sujeito representado por um ator – o actante – elemento proeminente, entidade virtualmente disponível para o preenchimento actorial da ação.

Entendida como totalidade que estrutura e confere consistência ao relato, a ação manifesta-se de forma peculiar nos diversos gêneros narrativos, propiciando análises diversas. Se no conto encontramos em princípio uma ação singular e concentrada, no romance é possível observar o desenrolar paralelo de várias ações, enquanto a novela é construída muitas vezes a partir da concatenação de várias ações individualizadas e protagonizadas pela mesma personagem, ou ainda, pelo mesmo motivo repetido em sequências de ações concatenadas.

A diversidade de dimensões que caracteriza a ação em cada gênero reveste-se de particular acuidade quando está em causa a “descrição de ações”. De acordo com diferentes critérios de ponderação (distribuição hierárquica das ações, grau de pormenorização, ordenação), a narrativa privilegia a economia e tratamento das ações em função da sua configuração estrutural: se um romance policial pode exigir uma representação pontual e minuciosa das ações, já um romance psicológico, muitas vezes regido por um narrador, tenderá a subalternizar a componente factual e objetiva das ações; e numa narrativa de narrador onisciente a grande desenvoltura que caracteriza um tal narrador permite-lhe eliminar certas ações, proceder a eventuais reordenações, aprofundar o seu desenvolvimento, estabelecer conexões hierárquicas entre várias elas. Seja como for, é impossível que a narrativa contemple todas as ações, ao receptor cabe normalmente uma função supletiva, pela ativação de mecanismos de inferência que lhe permitam preencher os vazios de ações omitidas e não perder de vista a coerência da narrativa.

 Além disso e num plano de ponderação macroscópico, a ação pode ser literariamente utilizada para insinuar sentidos tocados por evidentes ressonâncias histórico-ideológicas: é o que se verifica, por exemplo, com a ação do romance histórico, apoiada no pano de fundo da História incorporada na ficção, com a ação de um romance neo-realista, sugerindo o devir dialético de eventos de coloração social, etc.

HISTÓRIA     A história corresponde à realidade evocada pelo texto narrativo (acontecimentos e personagens), ela é o modo como o narrador dá a conhecer ao leitor essa realidade. Uma história pode apresentar um mundo possível cuja lógica pode não coincidir com a do mundo real. O mundo possível tem uma existência meramente textual. Cada texto narrativo ficcional apresenta-nos um mundo com indivíduos e propriedades e constrói o seu próprio domínio de referência.

É possível estabelecer uma distinção entre história (ou diegese), sucessão de acontecimentos reais ou fictícios que constituem o significado ou conteúdo narrativo; narração, ato produtivo do narrador, e narrativa propriamente dita (récit), discurso ou texto narrativo em que se plasma a história e que equivale ao produto do ato de narração. É possível também estabelecer a dicotomia história vs. discurso, identificando o nível da história com o conteúdo (conjunto de eventos, personagens e cenários representados) e o nível do discurso com os meios de expressão que veiculam e plasmam esse conteúdo. O primeiro nível compreende a sequência de ações, as relações entre personagens, a localização dos eventos num determinado contexto espacial; o segundo é o discurso narrativo propriamente dito, suscetível de ser manifestado através de substâncias diversas (linguagem verbal, imagens, gestos, etc.).

Esta dicotomia deve ser encarada como mero instrumento operatório que elucida alguns aspectos essenciais da composição de qualquer texto narrativo. De fato, é possível reconstituir a história veiculada por um texto narrativo em termos de sequência temporal e logicamente ordenada de eventos, e proceder em seguida à análise das diferentes técnicas discursivas que a atualizam. Na narrativa literária o ato de narração produz simultaneamente uma história e um discurso, dois planos inseparáveis que só uma exigência metodológica pode isolar.

Uma história pode ser veiculada por diferentes meios de expressão, sem se alterar significativamente: a história de um romance pode ser transposta para cinema, história em quadrinhos, teatro, sem contudo perder as suas propriedades essenciais. Existe, assim, uma camada de significação autônoma dotada de uma estrutura específica, independente dos meios de expressão utilizados para a transmitir. É inegável a existência deste fenômeno de transcodificação ao nível da história, mas convém assinalar que nunca é exatamente a mesma história que se conta num romance ou num filme, na medida em que a forma da expressão mantém uma relação de estreita solidariedade com a forma do conteúdo.

AUTOR    O autor é a entidade materialmente responsável pelo texto narrativo, é o sujeito de uma atividade literária a partir da qual se configura um universo com as suas personagens, ações, coordenadas temporais, etc. A categoria de autor é a do escritor que põe todo o seu oficio, todo o seu passado de informação literária e artística, todo o seu caudal de conhecimento e idieas a serviço do sentido unitário da obra que elabora.

A ligação do autor com a sua obra desenvolve-se no apelo (explícito ou tácito) à receptividade do leitor, apelo por vezes expresso num prólogo e feito de alusões às circunstâncias da criação, aos intuitos a que obedeceu, até mesmo, em certos casos, aos sentidos em que a leitura deve ser orientada. A figura do autor reveste-se de certa importância, sobretudo por força das relações que sustenta com o narrador, entendido como autor textual concebido e ativado pelo escritor. De um modo geral, pode dizer-se que entre autor e narrador estabelece-se uma tensão resolvida ou agravada na medida em que as distâncias (sobretudo ideológicas) entre um e outro se definem; em termos narratológicos.

A relação dialógica entre autor e narrador instaura-se em função de dois parâmetros: por um lado, a produção literária do autor e demais testemunhos ideológico-culturais (textos programáticos, correspondência, etc.), por outro lado, a imagem do narrador, deduzida a partir da sua implicação subjetiva no enunciado narrativo.

NARRADOR     A definição do conceito de narrador, como já salientamos, deve partir da distinção inequívoca relativamente ao conceito de autor. Se o autor corresponde a uma entidade real e empírica, o narrador será entendido fundamentalmente como autor textual, entidade fictícia a quem, no cenário da ficção, cabe a tarefa de enunciar o discurso, como protagonista da comunicação narrativa. Atente-se no seguinte exemplo: “Rubião fitava a enseada, – eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa” (M. de Assis, Quincas Borba). A entidade que toma a palavra é tão fictícia como a personagem (Rubião) de quem fala; trata-se de um sujeito com existência textual, tal como a segunda pessoa “vos” a quem se dirige (narratário). Confundir este narrador com Machado de Assis seria tão abusivo como identificá-lo com o próprio Rubião.

O narrador é, de fato, uma invenção do autor. Responsável, de um ponto de vista genético, pelo narrador, o autor pode projetar sobre ele certas atitudes ideológicas, éticas, culturais, cultivando estratégias ajustadas à representação artística dessas atitudes: ironia, aproximação parcial, construção de um alter ego, etc..

As funções do narrador não se esgotam no ato de enunciação que lhe é atribuído. Como protagonista da narração ele é detentor de uma voz observável ao nível do enunciado por meio de intrusões – vestígios mais ou menos discretos da sua subjetividade – que articulam uma ideologia ou uma simples apreciação particular sobre os eventos relatados e as personagens referidas. Por outro lado, a voz do narrador, relevando de uma determinada instância de enunciação do discurso, traduz-se em opções bem definidas adotadas pela situação narrativa adotada: narrador autodiegético, homodiegético e heterodiegético.

A DISTINÇÃO ENTRE NARRADOR AUTODIEGÉTICO, HOMODIEGÉTICO E HETERODIEGÉTICO         Em primeiro lugar, é preciso saber o que se entende por “diegese”. Genette já empregou o termo como sinônimo de história. Mais tarde considerou que era preferível reservá-lo para designar o universo espaço-temporal no qual se desenrola a história.

A expressão “narrador autodiegético” designa a entidade responsável por uma situação ou atitude narrativa específica: aquela em que o narrador da história relata as suas próprias experiências como personagem central dessa história. O registro de primeira pessoa gramatical que em tais narrativas se manifesta é, pois, uma consequência natural dessa coincidência narrador/protagonista.

Mais importante do que as incidências gramaticais são as que respeitam à organização do tempo. Em certos casos, pode verificar-se inteira sobreposição temporal entre narrador e protagonista: é o que se observa no monólogo interior, modalidade de narração simultânea em que o sujeito da enunciação coincide com o do enunciado. Muitas vezes, porém, não é isso que ocorre; o narrador autodiegético aparece então como entidade colocada num tempo ulterior em relação à história que relata, entendida como conjunto de eventos concluídos e inteiramente conhecidos. Sobrevém então uma distância temporal mais ou menos alargada entre o passado da história e o presente da narração; dessa distância temporal decorrem outras: ética, afetiva, moral, ideológica, etc., pois o sujeito que no presente recorda não é já o mesmo que vivenciou os fatos relatados.

A expressão “narrador heterodiegético”, designa uma particular relação narrativa: aquela em que o narrador relata uma história à qual é estranho, uma vez que não integra nem integrou, como personagem, o universo diegético em questão. Na tradição literária ocidental, o narrador heterodiegético constitui uma entidade largamente privilegiada, nos planos quantitativo e qualitativo. Romancistas da estatura de Eça de Queirós (O primo Basílio; O crime do Padre Amaro, Os Maias), Émile Zola (Thérèse Raquin, L assommoir), Tolstoi (Guerra e Paz, Anna Karenina) e muitos outros, instauraram nos seus romances narradores heterodiegéticos. Com eles, estrutura-se uma situação narrativa cujas linhas de força são as seguintes: polaridade entre narrador e universo diegético, instituindo-se entre ambos uma relação de alteridade em princípio irredutível; o narrador heterodiegético exprime-se na terceira pessoa, traduzindo um tal registro a alteridade mencionada o que não impede que o narrador heterodiegético enuncie pontualmente uma primeira pessoa que não chega para pôr em causa as dominantes descritas. O narrador heterodiegético protagoniza também, de modo mais ou menos visível, intrusões que traduzem juízos específicos sobre os eventos narrados.

Finalmente, o narrador homodiegético é a entidade que veicula informações advindas da sua própria experiência diegética; isso quer dizer que, tendo vivido a história como personagem, o narrador retirou daí as informações de que precisa para construir o seu relato, assim se distingue do narrador heterodiegético, na medida em que este último não dispõe de um tal conhecimento direto. Por outro lado, embora funcionalmente se assemelhe ao narrador autodiegético, o narrador homodiegético difere dele por ter participado na história não como protagonista, mas como figura cujo destaque pode ir da posição de simples testemunha imparcial a personagem secundária estreitamente solidária com a central. A relação de Watson com Sherlock Holmes, nos romances de Conan Doyle, representa a típica situação de um narrador homodiegético, o mesmo se observando na A Cidade e as Serras (Zé Fernandes e Jacinto) de Eça de Queirós.

FOCALIZAÇÃO   O termo focalização refere-se ao conceito identificado também por meio de expressões como ponto de vista, visão, restrição de campo e foco narrativo. Em favor de focalização existem vários argumentos. Antes de mais, a sua específica vinculação ao campo da narratologia, ao contrário do que acontece com perspectiva e ponto de vista, mais empregados no âmbito das artes plásticas. A focalização pode ser definida como a representação da informação diegética que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência, quer seja o de uma personagem da história, quer o do narrador heterodiegético; consequentemente, a focalização, além de condicionar a quantidade de informação veiculada (eventos, personagens, espaços, etc.), atinge a sua qualidade, por traduzir uma certa posição afetiva, ideológica, moral e ética em relação a essa informação.

A importância de que, do ponto de vista operatório, podem revestir-se os procedimentos de focalização depende muito da articulação de diferentes soluções de representação, a partir de um leque relativamente limitado de opções. Podendo, em princípio, reduzir-se a três signos fundamentais: focalização externa, focalização interna e focalização onisciente.

Traduzindo uma modalidade específica de perspectiva narrativa, a focalização externa é constituída pela estrita representação das características superficiais e materialmente observáveis de uma personagem, de um espaço ou de certas ações; com o outro intuito de limitar a informação facultada ao exterior dos elementos diegéticos representados, a focalização externa decorre por vezes de um esforço do narrador, no sentido de se referir de modo objetivo e desapaixonado aos eventos e personagens que integram a história. Quando a história é contada em focalização externa, ela é contada a partir do narrador, e este detém um ponto de vista,no sentido primitivo, pictórico, sobre as personagens, os lugares, os acontecimentos. Ele não é, então, de modo algum privilegiado e só vê o que um espectador hipotético veria.

Um dos lugares estratégicos de inscrição da focalização externa é o início da narrativa, quando o narrador descreve uma personagem desconhecida (muitas vezes o protagonista) cuja caracterização minuciosa se processará em momento posterior a essa primeira, precária e de certo modo intrigante descrição: “Um homem vagueava ali, contudo, que não parecia dar-se grande pressa em entrar. Ia e vinha, parava, esquadrinhava a multidão, passava automaticamente de grupo a grupo, nesta ansiedade tortuosa de quem procura com aferro alguém. No olhar, dilatado e teimoso, duma secura inflamada e vítrea, fulgurava a obstinação dum desejo; ao passo que na boca a brasa do charuto, numa febre de pequeninos movimentos bruscos, denotava que os lábios e as maxilas eram nervosamente sacudidos por uma forte preocupação animal” (A. Botelho, O bardo de Lavos).

Constituindo uma modalidade específica de perspectiva narrativa, a focalização interna corresponde à instituição do ponto de vista de uma personagem inserida na ficção, o que normalmente resulta na restrição dos elementos informativos a relatar, em função da capacidade de conhecimento dessa personagem. Colocada como sujeito da focalização, a personagem desempenha então uma função de filtro quantitativo e qualitativo que rege a representação narrativa. O que está em causa não é, pois, estritamente aquilo que a personagem vê, mas de um modo geral o que cabe dentro do alcance do seu campo de consciência, ou seja, o que é alcançado por outros sentidos, para além da visão, bem como o que é já conhecido previamente e o que é objeto de reflexão interiorizada. Por exemplo: “A luz da candeia, quando muito, alcançava os pés da cama. A seguir, numa zona indecisa onde a penumbra ia ganhando palmo a palmo a consistência da sombra, Guilhermina adivinhava os objetos pelo hábito: a mancha esbranquiçada do lavatório, uma cadeira, o armário de pinho. Ao fundo, o quarto mergulhava no escuro. Se a chama oscilava ou o fumo a enegrecia tudo isto se tornava porém incerto e trêmulo”. (C. de Oliveira, Casa na duna); como se vê, para além do que a personagem pode ver, a sua focalização interna abrange também “os objetos [adivinhados] pelo hábito”.

A focalização interna pode ser fixa, múltipla ou variável. No primeiro caso, é numa só personagem (muitas vezes o protagonista) que se centraliza a focalização; a focalização interna múltipla consiste no aproveitamento (quase sempre momentâneo e episódico) da capacidade de conhecimento de um grupo de personagens da história; a focalização interna variável permite a circulação do núcleo focalizador do relato por várias personagens: é o que acontece em muitos romances policiais ou no romance epistolar.

Adotamos aqui a designação focalização onisciente, fazendo-a corresponder à narrativa de narrador onisciente. Por focalização onisciente, entender-se-á, pois, toda representação narrativa em que o narrador faz uso de uma capacidade de conhecimento praticamente ilimitada, podendo, por isso, facultar as informações que entender pertinentes para o conhecimento da história; colocado numa posição de transcendência em relação ao universo diegético. O narrador controla e manipula soberanamente os eventos relatados, as personagens que os interpretam, o tempo em que se movem, os cenários em que se situam. Isso não implica uma representação exaustiva em absoluto, o que seria utópico e materialmente inviável. A atitude seletiva que normalmente cabe ao narrador em focalização onisciente relaciona-se com duas questões relevantes. Em primeiro lugar, com o seu posicionamento temporal em relação à história; relevando habitualmente de uma narração ulterior que aborda a história como concluída e integralmente conhecida. Por outro lado, as possibilidades seletivas da focalização onisciente implicam uma vertente subjetiva. Ao selecionar o que deve relatar, o narrador explícita ou implicitamente interpreta, do mesmo modo que formula juízos de valor.

NARRAÇÃO       Entendida como ato e processo de produção do discurso narrativo, a narração envolve necessariamente o narrador enquanto sujeito responsável por esse processo. A definição e análise das particularidades da narração exigem a referência a diferentes vertentes da sua concretização: o tempo e espaço em que decorre; as específicas circunstâncias que afetam esse tempo e esse espaço, a relação do narrador com a história, com os seus componentes; e com o narratário a quem se dirige. Exemplificando, as narrações da novela sentimental das Viagens de Garrett, das Memórias Póstumas de Brás Cubas de M. de Assis, de Thérèse Raquin de Zola ou do monólogo interior que encerra o Ulisses de Joyce, dependem de parâmetros completamente diversos, agindo esses parâmetros sobre a configuração do discurso enunciado e sobre a imagem da história representada. No primeiro caso, o concreto da viagem, do espaço em que decorre e das personagens que a protagonizam faz da narração um ato simultaneamente lúdico e interventor no presente da história principal; no caso das Memórias Póstumas, a situação do defunto autor, narrando depois da sua morte, estimula esse olhar entre o irônico e o desencantado que a narração plasma; já em Thérèse Raquin, a ulterioridade da narração é conduzida no sentido de consolidar a atitude científica e demonstrativa de um narrador de certa forma distanciado do universo representado; finalmente o monólogo interior encena uma narração executada sobre a irrupção espontânea de reflexões cujo teor desordenado e caótico é devido justamente ao imediatismo de uma tal narração.

TEMPO DA NARRAÇÃO      O tempo da narração é a relação temporal da narração com a suposta ocorrência do evento. Quer dizer que é possível (embora nem sempre fácil) determinar a distância temporal a que se encontra esse ato produtivo (e também o narrador que o protagoniza, bem como aquilo que o envolve) relativamente à história que nele se relata. Quando lemos, no início do conto O fogo e as cinzas, que “Mestre Poupa bombeiro, André Juliano e eu formávamos uma trindade falhada” (M. da Fonseca, O fogo e as cinzas), a simples utilização de um tempo do passado permite depreender a localização do ato de narração num tempo posterior à história; se, de fato, é usual que um narrador aguarde o final da história para a contar, não devemos excluir outras possibilidades: no mesmo conto, logo em seguida, o narrador diz-nos que “há momentos em que vejo isto com uma grande clareza”, assim aproximando consideravelmente (se é que não sobrepondo mesmo) a instância da narração daquilo “vejo isto” a que ela se refere.

As várias possibilidades de colocação temporal da narração em relação à história foram sistematizadas em quatro modalidades:

  1. narração anterior > poucas vezes, a narração é anterior (futuro);
  2. narração ulterior > frequentemente a narração é posterior (tempo passado);
  3. narração intercalada > a narração pode ainda começar depois de se ter iniciado o evento, mas não antes de ele ter terminado (durativo); e
  4.  narração simultânea > a narração pode também ser contemporânea do evento, como se fosse um relato momento-a-momento (presente).

Designa-se como narração anterior o ato narrativo que antecede a ocorrência dos eventos a que se refere. Ela constitui, como é fácil de ver, um processo de enunciação relativamente raro: ela ocorre quando é enunciado um relato de tipo preditivo, antecipando (pela via do sonho, da profecia, da especulação oracular, etc.) acontecimentos projetados no futuro das personagens da história e do narrador. Um exemplo expressivo de narração anterior é o discurso profético de Adamastor sobre os castigos reservados à ousadia dos Portugueses, em Os Lusíadas.

Entende-se por narração ulterior aquele ato narrativo que se situa numa posição de inequívoca posteridade em relação à história. Esta é dada como terminada e resolvida quanto às ações que a integram; só então o narrador, colocando-se perante esse universo diegético por assim dizer encerrado, inicia o relato, numa situação que é a de quem conhece na sua totalidade os eventos que narra. Daí a possibilidade de manipulação calculada dos procedimentos das personagens, dos incidentes da ação, até de antecipação daquilo que o narrador sabe que vai ocorrer: “Trouxeram os filhos, um de quatro anos, outro de dois, só o mais velho vingará, porque ao outro hão de levá-lo as bexigas antes de passados três meses”. (J. Saramago, Memorial do Convento).

Claramente dominante na esmagadora maioria das narrativas, a narração ulterior acontece, em especial, em duas situações narrativas: a que é regida por um narrador heterodiegético, muitas vezes em focalização onisciente e comportando-se como entidade que controla o universo diegético; e a que é protagonizada por um narrador autodiegético, sobretudo quando se trata de evocação autobiográfica ou memorial.

Entende-se por narração intercalada o conjunto de atos narrativos que, não aguardando a conclusão da história, resulta da fragmentação da narração em várias etapas interpostas ao longo da história. Durante a fragmentação, são produzidos micro-relatos, de cuja concatenação se depreende a narrativa na sua totalidade orgânica. De certo modo, pode afirmar-se que a narração intercalada sustenta algumas afinidades com a narração ulterior pois também a narração intercalada tem lugar depois de ocorridos os fatos que relata, fazendo-o, no entanto, de forma entrecortada e por etapas.

No quadro das diversas opções configuradas pelo tempo da narração, a narração simultânea é constituída pelo ato narrativo que coincide temporalmente com o desenrolar da história. Trata-se de uma sobreposição precisa que, pelo rigor que apresenta, se distingue da imprecisão que normalmente caracteriza a distância temporal da narração ulterior ou da narração anterior em relação ao acontecer da história. Não sendo obviamente tão frequente como a narração ulterior, a narração simultânea ocorre, entretanto, numa situação específica: na enunciação do monólogo interior. Trata-se, neste caso, de um discurso que pretende representar o espontâneo fluir de reflexões e divagações situadas no cenário da interioridade de uma personagem. Um dos exemplos mais conhecidos na literatura brasileira é o monólogo interior de Policarpo Quaresma de Lima Barreto: “Mas, como é que ele, tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida, gastara o seu tempo, envelhecera atrás de tal quimera? Como é que não viu nitidamente a realidade, não a pressentiu logo e se deixou enganar por um falaz ídolo, absorver-se nele, dar-lhe em holocausto toda a sua existência? Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo; e assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer uma asneira!”

ESPAÇO          Existe uma tensa relação de interação entre as três categorias fundamentais da narrativa: espaço, personagem, e ação. O espaço constitui uma das mais importantes, não só pelas articulações funcionais que estabelece com as restantes categorias, mas também pelas incidências semânticas que o caracterizam. É a categoria da narrativa que se imbrica com o descritivo. Na realidade, trata-se do descritivo apoiando o narrativo. Entendido como domínio específico da história ele integra, em primeira instância, os componentes físicos que servem de cenário ao desenrolar da ação e à movimentação das personagens: cenários geográficos, interiores, decorações, objetos, etc.; em segunda instância, o conceito de espaço abarca tanto as atmosferas sociais (espaço social) como as psicológicas (espaço psicológico).

A variedade de aspectos que o espaço físico pode assumir vai da largueza da região ou da cidade gigantesca à privacidade de um recatado espaço interior. Em função destas opções certos romancistas são associados aos cenários urbanos que preferiram: Eça é o romancista de Lisboa; Camilo é o do Porto; Machado de Assis do Rio; e Dickens de Londres.

Num plano mais restrito, o espaço da narrativa centra-se em cenários mais reduzidos: a casa, por exemplo, dando origem a romances que fazem dela o eixo microcósmico em função do qual se vai definindo a condição histórica e social das personagens. Por exemplo, A ilustre casa de Ramires de Eça e O Cortiço de Aloísio Azevedo. À medida que o espaço se vai particularizando cresce o investimento descritivo que lhe é consagrado e enriquecem-se os significados decorrentes, basta lembrar o interior da residência em Paris, na A Cidade e as Serras de Eça, com a sua desmedida profusão de instrumentos de civilização.

O espaço social configura-se sobretudo em função da presença de tipos e figurantes: trata-se frequentemente de descrever ambientes que ilustrem, quase sempre com intenção crítica, vícios e deformações da sociedade.

Funcionando também como domínio em estreita conexão com as personagens, o espaço psicológico constitui-se em função da necessidade de evidenciar atmosferas densas e perturbadoras, projetadas sobre o comportamento, também ele normalmente conturbado, das personagens.

Uma das categorias da narrativa que mais decisivamente interferem na representação do espaço é a perspectiva narrativa. Quer quando o narrador onisciente prefere uma visão panorâmica, quer quando se limita a uma descrição exterior e rigorosamente objetiva, quer sobretudo quando ativa a focalização interna de uma personagem. Existem narrativas em que o espaço aparece indelevelmente atingido por um olhar revelador do narrador, é o caso a narrativa.de viagens: da Peregrinação de F. Mendes Pinto, às Viagens de Garrett, mesmo sem se cumprir com rigor a representação de um ponto de vista individual, é a novidade do espaço (ou a sua redescoberta) que rege toda a construção da narrativa

O espaço, enquanto categoria narrativa detentora de inegáveis potencialidades de representação semântica, pode ser entendido também como signo ideológico. Quando é possível observar nele a presença variavelmente explícita de atributos de natureza social, econômica, histórica, etc., o espaço adquire então uma certa contextura ideológica, remetendo. Por exemplo, os espaços físicos do sertão nordestino em Vidas secas de G. Ramos (associados, naturalmente, às personagens, às suas ações e aos juízos do narrador) remetem para a opressão que no romance se denuncia, como aspecto particular de um universo socioeconômico atravessado pelos excessos de uma exploração desumana e brutal.

PERSONAGEM     Categoria fundamental da narrativa, a personagem evidencia a sua relevância em relatos de diversa inserção sócio-cultural e de variados suportes expressivos. Na narrativa literária (da epopéia ao romance e do conto ao romance cor-de-rosa), no cinema, na história em quadrinhos, ou na telenovela, a personagem revela-se, frequentemente, o eixo em torno do qual gira a ação. Por seu lado, os escritores testemunham eloquentemente o relevo e o poder impressivo da personagem. Por exemplo, Flaubert revela: “Quando escrevi o envenenamento de Emma Bovary, tive na boca o sabor do arsênico com tanta intensidade, senti-me eu mesmo tão autenticamente envenenado, que tive duas indigestões”; e Gide, sublinhando a autonomia da personagem, declara que “o verdadeiro romancista escuta e vigia [as suas personagens] enquanto atuam, espia-as antes de as conhecer. É só através do que lhes ouve dizer que começa a compreender quem são”.

Certas tendências do romance dos nossos dias (como o nouveau roman) denunciam uma crise da personagem, considerando-a um ser sem contornos, indefinível, inacessível e invisível, um eu anônimo que é tudo e que não é nada e que quase sempre não é mais do que um reflexo do próprio autor. Na opinião de alguns críticos, o romance de personagens pertence ao passado, caracteriza uma época que assinalou o apogeu do indivíduo. O Estruturalismo recupera o conceito de personagem, equacionando-a nos termos de renovação teórica e metodológica que estas palavras traduzem: “Manifestada sob a espécie de um conjunto descontínuo de marcas, a personagem é uma unidade difusa de significação, construída progressivamente pela narrativa. Uma personagem é o suporte das redundâncias e das transformações semânticas da narrativa, é constituída pela soma das informações facultadas sobre o que ela é e sobre o que ela faz”. Enquanto signo narrativo, a personagem é sujeita a procedimentos de estruturação que determinam a sua funcionalidade e peso específico na economia do relato. Deste modo, a personagem define-se em termos de relevo: protagonista, personagem secundária, ou mero figurante.

A personagem pode revelar uma certa composição – personagem redonda e personagem plana – também ela indissociável da intervenção na ação, da densidade psicológica, da ilustração do espaço social, etc. A personagem plana é facilmente reconhecida, ela se identifica com o tipo e com a sua representatividade social; elas são construídas em torno de uma única idiea ou qualidade, quando nela existe mais de um fator, atinge-se o início da curva que leva à personagem redonda. A personagem redonda reveste-se da complexidade suficiente para constituir uma personalidade bem vincada. A condição de imprevisibilidade que lhe é própria, a revelação gradual dos seus traumas, vacilações, obsessões, constituem os fatores determinantes de sua configuração. É importante levar em consideração que a distinção que se faz entre os dois tipos de personagens é mais didática, existindo forçosamente personagens que oscilam entre as duas classificações.