Excertos de: SANTO AGOSTINHO. Confissões. SP: Editora Nova Cultural, 1999.
14 O QUE É O TEMPO?
17. Não houve tempo nenhum em que não fizésseis alguma coisa, pois fazíeis o próprio tempo.
Nenhuns tempos Vos são coeternos, porque Vós permaneceis imutável, e se os tempos assim permanecessem, já não seriam tempos. Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente.
De que modo existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro -, se o passado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas eternidade. Mas se o presente, para ser tempo, tem necessariamente de passar para o pretérito, como podemos afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de existir? Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe, porque tende a não ser?[1]
15 AS TRÊS DIVISÕES DO TEMPO
18. Contudo, dizemos tempo longo ou breve, e isto, só o podemos afirmar do futuro ou do passado. Chamamos “longo” ao tempo passado, se é anterior ao presente, por exemplo, cem anos. Do mesmo modo dizemos que o tempo futuro é “longo”, se é posterior ao presente também cem anos. Chamamos “breve” ao passado, se dizemos, por exemplo, “há dez dias”; e ao futuro, se dizemos “daqui a dez dias”. Mas como pode ser breve ou longo o que não existe? Com efeito, o passado já não existe e o futuro ainda não existe. Não digamos: “é longo”; mas digamos do passado: “foi longo”; e do futuro: “será longo”.
Nesta questão, escarnecerá do homem a vossa Verdade, ó meu Deus e minha Luz? O tempo longo, já passado, foi longo depois de passado ou quando ainda era presente? Só então podia ser longo (nesse momento presente), quando existia alguma coisa capaz de ser longa. O passado já não existia; portanto não podia ser longo aquilo que totalmente deixara de existir.
Não digamos pois: “o tempo passado foi longo”, porque não encontraremos aquilo que tivesse podido ser longo, visto que já não existe desde o instante em que passou. Digamos antes: “aquele tempo presente foi longo”, porque só enquanto foi presente é que foi longo. Ainda não tinha passado ao não-ser, e portanto existia uma coisa que podia ser longa. Mas, logo que passou, simultaneamente deixou de ser longo, porque deixou de existir.
19. Vejamos, portanto, ó alma humana, se o tempo presente pode ser longo. Foi-te concedida a prerrogativa de perceberes e medires a sua duração. Que me responderás? Porventura cem anos presentes são muito tempo? Considera primeiro se cem anos podem ser presentes. Se o primeiro ano está decorrendo, este é presente, mas os outros noventa e nove são futuros, e portanto ainda não existem. Se está decorrendo o segundo ano, um é passado, outro presente e os restantes futuros. Se apresentarmos como presente qualquer dos anos intermediários da série centenária, notamos que os que estão antes dele são passados, e os que estão depois são futuros. Pelo que cem anos não podem ser presentes.
Examina, pelo menos, se o ano que está transitando pode ser presente. Com efeito, se o primeiro mês está passando, os outros são futuros. Se estamos no segundo mês, o primeiro já passou e os outros ainda não existem. Logo, nem o ano que está decorrendo pode ser todo presente, e, se não é todo presente, não é um ano presente. O ano compõe-se de doze meses; um mês qualquer é presente enquanto decorre; os outros são passados ou futuros. Nem sequer, porém, o mês que está decorrendo é presente, mas somente o dia. Se é o primeiro dia, todos os outros são futuros; se é o último, todos os outros são passados; se é um dia intermediário, está entre dias passados e futuros.
20. O tempo presente – o único que julgávamos poder chamar longo -, ei-lo reduzido apenas ao espaço de um só dia! Mas discutamos também acerca dele, porque nem sequer um dia é inteiramente presente.
O dia e a noite compõem-se de vinte e quatro horas, entre as quais a primeira tem as outras todas como futuras, e a última tem a todas como passadas. Com respeito a qualquer hora intermediária são pretéritas aquelas que a precedem, e futuras as subsequentes. Uma hora compõe-se de fugitivos instantes. Tudo o que dela já debandou é passado. Tudo o que ainda resta é futuro. Se pudermos conceber um espaço de tempo que não seja suscetível de ser subdividido em mais partes, por mais pequeninas que sejam, só a esse podemos chamar tempo presente. Mas este voa tão rapidamente do futuro ao passado, que não tem nenhuma duração. Se a tivesse, dividir-se-ia em passado e futuro. Logo, o tempo presente não tem nenhum espaço.
Onde existe portanto o tempo que podemos chamar longo? Será o futuro? Mas deste tempo não dizemos que é longo, porque ainda não existe. Dizemos: “será longo”. E quando será? Se esse tempo ainda agora está para vir, nem então será longo, porque ainda não existe nele aquilo que seja capaz de ser longo. Suponhamos que, ao menos, no futuro será longo. Mas só o poderá começar a ser no instante em que ele nasce desse futuro – que ainda não existe – e se torna tempo presente, porque só então possui capacidade de ser longo. Mas com as palavras que acima deixamos transcritas o tempo presente clama que não pode ser longo.
16 PODE MEDIR-SE O TEMPO
21. E contudo, Senhor, percebemos os intervalos dos tempos, comparamo-los entre si e dizemos que uns são mais longos e outros são mais breves. Medimos também quando este tempo é mais comprido ou mais curto do que outro, e respondemos que um é duplo ou triplo, ou que a relação entre eles é simples, ou que este é tão grande como aquele.
Mas não medimos os tempos que passam, quando os medimos pela sensibilidade. Quem pode medir os tempos passados que já não existem ou os futuros que ainda não chegaram? Só se alguém se atrever a dizer que pode medir o que não existe! Quando está decorrendo o tempo, pode percebê-lo e medi-lo. Quando, porém, já tiver decorrido, não o pode perceber nem medir, porque esse tempo já não existe.[2]
17 ATRAVÉS DO PRETÉRITO E DO FUTURO
22. Não afirmo, ó Pai. Apenas pergunto. Meu Deus, assisti-me e dirigi-me!
Quem se atreveria a dizer-me que não há três tempos, conforme aprendemos na infância e às crianças o ensinamos: o pretérito, o presente e o futuro? Existirá somente o presente, visto que os outros dois não existem? Ou eles também existem, e então o tempo procede de algum retiro oculto, quando de futuro se faz presente? Entra o tempo em outro esconderijo, quando de presente se faz passado? Onde é que os adivinhos viram as coisas futuras que vaticinaram, se elas ainda não existem? Efetivamente, não é possível ver o que não existe. E os que narram fatos passados, sem dúvida não os poderiam veridicamente contar, se os não vissem com a alma. Ora, se esses fatos passados não existissem, de modo nenhum poderiam ser vistos. Existem, portanto, fatos futuros e pretéritos.
18 O VATICÍNIO DO FUTURO PELO PRESENTE
23. Permiti, Senhor, minha Esperança, que eu leve mais além as minhas investigações. Não se perturbe a minha atenção!
Se existem coisas futuras e passadas, quero saber onde elas estão. Se ainda o não posso compreender, sei todavia que em qualquer parte onde estiverem, aí não são futuras nem pretéritas, mas presentes. Pois, se também aí são futuras, ainda lá estão; e, se nesse lugar são pretéritas, já2 lá não estão. Por conseguinte, em qualquer parte onde estiverem, quaisquer que elas sejam, não podem existir senão no presente. Ainda que se narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígios. Por conseguinte, a minha infância, que já não existe presentemente, existe no passado que já não é. Porém a sua imagem, quando a evoco e se torna objeto de alguma descrição, vejo-a no tempo presente, porque ainda está na minha memória.
Confesso-Vos, meu Deus, que não sei se a causa pela qual se prediz o futuro equivale ao fenômeno de se apresentarem ao espírito as imagens já existentes das coisas que ainda não existem. Sei com certeza que nós, a maior parte das vezes, premeditamos as nossas ações futuras, e essa premeditação é presente, ao passo que a ação premeditada ainda não existe, porque é futura. Quando empreendermos e começarmos a realizar o que premeditamos, então essa ação existirá, porque já não é futura, mas presente. De qualquer modo que suceda este pressentimento oculto das coisas futuras, não podemos ver senão o que possui existência. Ora, o que já existe não é futuro, mas presente. Por conseguinte, quando se diz que se vêem os acontecimentos futuros, não se vêem os próprios acontecimentos ainda inexistentes – isto é, os fatos futuros -, mas sim as suas causas, ou talvez os seus prognósticos já dotados de existência. Portanto, com relação aos que os vêem, esses acontecimentos não são futuros, mas sim presentes.
24. Por esses vaticínios é apenas profetizado o futuro já preconcebido na alma. Esses vaticínios, repito, já existem, e aqueles que predizem o futuro já os vêem como presentes junto a si.
Tomemos algum exemplo da multidão tão numerosa de fenômenos.
Vejo a aurora e prognostico que o sol vai nascer. O que vejo é presente, o que anuncio é futuro. Não é o sol que é futuro, porque esse já existe, mas sim o seu nascimento, que ainda se não realizou. Contudo, não o poderia prognosticar sem conceber também, na minha imaginação, o mesmo nascimento, como agora o faço quando isso declaro. Mas nem aquela aurora que eu vejo no céu e que precede o aparecimento do sol, nem aquela imagem formada no meu espírito são o mesmo nascimento do sol, ainda que, para se predizer este futuro, se devam enxergar a aurora e a sua imagem como presentes.
Por conseguinte, as coisas futuras ainda não existem; e se ainda não existem, não existem presentemente. De modo algum podem ser vistas, se não existem. Mas podem ser prognosticadas pelas coisas presentes que já existem e se deixam observar.
19 ORAÇÃO AO SENHOR DO FUTURO
25. Declarai-nos, pois, ó Soberano das vossas criaturas, de que modo ensinais às almas os acontecimentos futuros, pois não se pode duvidar de que os revelastes aos vossos profetas. De que modo ensinais as coisas futuras, ó Senhor para quem não há futuro? Ou antes, de que modo ensinais algumas coisas presentes acerca do futuro? Pois o que não existe também não pode, evidentemente, ser ensinado!
Este modo misterioso está demasiado acima da minha inteligência. Supera as minhas forças. Por mim não poderei atingi-lo. Porém, podê-lo-ei por Vós, quando mo concederdes, ó doce luz dos ocultos olhos da minha alma.
20 CONCLUSÃO DESTA ANÁLISE: NOVA TERMINOLOGIA
26. O que agora claramente transparece é que nem há tempos futuros nem pretéritos. É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras. Se me é lícito empregar tais expressões, vejo então três tempos e confesso que são três.
Diga-se também que há três tempos: pretérito, presente e futuro, como ordinária e abusivamente se usa. Não me importo nem me oponho nem critico tal uso, contanto que se entenda o que se diz e não se julgue que aquilo que é futuro já possui existência, ou que o passado subsiste ainda. Poucas são as coisas que exprimimos com terminologia exata. Falamos muitas vezes sem exatidão, mas entende-se o que pretendemos dizer!
21 NOVAS DIFICULDADES: COMO PODE MEDIR-SE O TEMPO?
27. Disse há pouco que medimos os tempos que passam, de modo que podemos afirmar: este espaço de tempo é duplo de tal outro, ou é-lhe equivalente, ou este é igual àquele. Do mesmo modo exprimimos outras subdivisões do tempo, se mais alguma outra medida pudermos enunciar. Por conseguinte, como dizia, medimos os tempos ao decorrerem. E se alguém me disser: “Como o sabeis?”, responder-lhe-ei: “Sei-o porque os medimos”. Não medimos o que não existe. Ora, as coisas pretéritas ou futuras não existem. Como medimos nós o tempo presente, se não tem espaço? Mede-se quando passa. Porém, quando já tiver passado, não se mede, porque já não será possível medi-lo.
Mas de onde se origina ele? Por onde e para onde passa, quando se mede? De onde se origina ele senão do futuro? Por onde caminha, senão pelo presente? Para onde se dirige, senão para o passado? Portanto, nasce naquilo que ainda não existe, atravessando aquilo que carece de dimensão, para ir para aquilo que já não existe.
Porém, que medimos nós senão o tempo em algum espaço? Não diríamos tempos simples, duplos, triplos e iguais ou com outras denominações análogas, se os não considerássemos como espaços de tempos. Em que espaço medimos o tempo que está para passar? Será no futuro, de onde parte? Mas nós não podemos medir o que ainda não existe! Será no presente, por onde parte? Mas nós não medimos o que não tem nenhuma extensão! Será no passado, para onde parte? Mas, para nós, não é mensurável o que já não existe!
23 O TEMPO É UMA CERTA DISTENSÃO
29. Ouvi dizer a um homem instruído que o tempo não é mais que o movimento do Sol, da Lua e dos astros.[3]Não concordei. Porque não seria antes o movimento de todos os corpos? Se os astros parassem e continuasse a mover-se a roda do oleiro, deixaria de haver tempo para medirmos as suas voltas? Não poderíamos dizer que estas se realizavam em espaços iguais, ou, se a roda umas vezes se movesse mais devagar, outras depressa, não poderíamos afirmar que umas voltas demoravam mais, outras menos? Ou, ao dizermos isto, não falamos nós no tempo, e não há nas nossas palavras sílabas longas e sílabas breves, assim chamadas, porque umas ressoam durante mais tempo e outras durante menos tempo? Fazei, meu Deus, com que os homens conheçam por meio deste simples exemplo as noções comuns das coisas grandes e pequenas.
Há estrelas e luzeiros no céu que servem de sinais, indicam as estações, as horas e os anos. Com certeza, existem. Mas nem eu afirmo que uma volta daquela roda de madeira represente um dia, nem aquele sábio se atreverá a dizer que esse giro não representa um determinado tempo.
30. Desejo saber a força e natureza do tempo com que medimos o movimento dos corpos e dizemos, por exemplo, que tal movimento é duas vezes mais longo no tempo do que outro qualquer. Prossigamos na investigação: chamamos dia não somente à demora do Sol sobre a Terra, pela qual se diferencia o dia e a noite, mas também ao giro completo que o Sol descreve do Oriente ao Oriente. Por isso dizemos: “Passaram-se tantos dias”. Entendemos também as respectivas noites, sem enumerar à parte os seus espaços. Portanto, já que o movimento do Sol e o seu percurso do Oriente ao Oriente completam um dia, desejava saber se é o movimento que constitui o dia, ou se é a duração em que se realiza esse movimento, ou se são estas duas coisas conjuntamente.
Se fosse o movimento do Sol que constituísse o dia, teríamos um dia, ainda que o Sol completasse a sua carreira num tão pequeno espaço de tempo quanto é o de uma só hora. Se fosse a duração do percurso do Sol que constituísse o dia, não haveria dia, se de um nascer a outro nascer do Sol houvesse a breve duração de tempo quanto é o de uma só hora. Mas seria preciso que o Sol desse vinte e quatro voltas para completar um dia. Se fossem o movimento do Sol e a duração desse movimento a dar origem ao dia, este não se poderia apelidar com tal nome, se o Sol perfizesse o seu giro completo no espaço de uma hora. Também o não chamaríamos dia, se se passasse tanto tempo estando o Sol parado, quanto este costuma gastar no seu percurso de uma manhã a outra manhã.
Agora não procuro averiguar em que consiste aquilo que apelidamos dia, mas sim o que seja o tempo, unidade pela qual, medindo o trajeto do Sol, diríamos que o completou em menos de metade do espaço do tempo costumado, se acaso o perfizesse no espaço de tempo quanto é aquele em que decorrem doze horas. Comparando as duas durações, diremos que uma é simples e outra dupla, ainda que o Sol demorasse umas vezes o tempo simples, outras vezes o dobro, no seu percurso do Oriente ao Oriente.[4]
Ninguém me diga, portanto, que o tempo é o movimento dos corpos celestes. Quando, com a oração de Josué, o Sol parou, a fim de ele concluir vitoriosamente o combate, o Sol estava parado, mas o tempo caminhava.[5]Este espaço de tempo foi o suficiente para executar e para pôr termo ao combate. Vejo portanto que o tempo é uma certa distensão. Vejo, ou parece-me que vejo? Só Vós, Luz e Verdade, mo demonstrareis.[6]
24 O TEMPO NÃO É O MOVIMENTO DOS CORPOS
31. Se alguém me disser que o tempo é o movimento de um corpo, mandar-me-eis estar de acordo? Não mandareis. Ouço dizer que os corpos só se podem mover no tempo. Vós mesmo o afirmais. Mas não ouço dizer que o tempo é esse movimento dos corpos. Não o dizeis. Quando um corpo se move, é com o tempo que meço a duração desse movimento, desde que começou até acabar. Se o não vi principiar a mover-se e persevera de modo a não poder notar quando termina, só me é permitido medir a duração do movimento desde o instante em que comecei a vê-lo até que o deixei de ver. Se o presencio por longo espaço, não posso dizer quanto tempo demorou, mas somente que demorou muito tempo, porque o “quanto” só por comparação o podemos avaliar. Dizemos, por exemplo, que “isto durou tanto quanto aquilo” , que “isto durou o dobro daquilo” e de modo semelhante, nos outros casos. Se pudermos observar de que lado vem o corpo que se move e para onde vai, ou se as suas partes se movem como um torno, poderemos dizer quanto tempo durou de um lugar a outro o movimento deste corpo ou das partes.
Portanto, sendo diferentes o movimento do corpo e a medida da duração do movimento, quem não vê qual destas duas coisas se deve chamar de tempo? Num corpo que umas vezes se move com diferente velocidade e outras vezes está parado, medimos não somente o seu movimento mas também o tempo que está parado. Dizemos: “Esteve tanto tempo parado como a andar”, ou “esteve parado o dobro ou o triplo do tempo em que esteve em movimento”, e assim por diante. Ainda no cálculo exato ou aproximativo, costuma dizer-se “mais” e “menos”.
Portanto, o tempo não é o movimento dos corpos.
26 NOVA TEORIA SOBRE O TEMPO
33. Acaso minha alma não Vos engrandece ao declarar-Vos, com verdade, que meço os tempos? Efetivamente, meu Deus, eu meço-os, e não sei o que meço. Meço o movimento de um corpo com o tempo. Não poderei eu medir o tempo do mesmo modo? Ser-me-á possível medir o movimento de um corpo enquanto ele perdura, e quanto o corpo leva em chegar de um lugar a outro sem que meça o tempo em que se move?
Com que posso eu medir o tempo? E com um espaço mais breve de tempo que calculamos outro mais longo, do mesmo modo que medimos o comprimento de um caibro com o côvado? Igualmente vemos que, pela duração de uma sílaba breve, se avalia a de uma sílaba longa, e afirmamos que a duração de uma é dupla da outra. Assim, medimos a extensão de um poema pelo número de versos, a grandeza dos versos pela dos pés, a dos pés pela duração das sílabas, as sílabas longas pelas breves, e não pelo número de páginas, pois deste modo mediríamos os espaços e não os tempos. Conforme as palavras passam e nós as pronunciamos, dizemos: “Este poema é extenso, pois se compõe de tantos versos; os versos são compridos porque constam de tantos pés; os pés também são compridos pois se estendem por tantas sílabas; estas são longas porque são o dobro das breves”.
Mas nem assim alcançamos medida certa para o tempo, porque pode suceder que um verso menos extenso ressoe por maior espaço de tempo, se se pronuncia mais lentamente do que outro mais longo, se é proferido mais depressa. O mesmo sucede aos poemas, pés e sílabas.
Pelo que, pareceu-me que o tempo não é outra coisa senão distensão; mas de que coisa o seja, ignoro-o.[7]Seria para admirar que não fosse a da própria alma.[8]Portanto, dizei-me, eu Vo-lo suplico, meu Deus, que coisa meço eu, quando declaro indeterminadamente: “Este tempo é mais longo do que aquele”, ou quando digo determinadamente “Este é duplo daquele outro?” Sei perfeitamente que meço o tempo, mas não o futuro, porque ainda não existe. Também não avalio o presente, pois não tem extensão, nem o passado, que não existe. Que meço eu então? O tempo que presentemente decorre e não o que já passou? Assim o tinha dito eu.
27 UMA EXPERIÊNCIA
34. Insiste, ó minha alma, e redobra esforçadamente de atenção: “Deus nos ajudará, pois Ele nos criou e não fomos nós que nos criamos” .[9]
Fixa o olhar onde desponta o amanhecer da Verdade. Supõe, por exemplo, que a voz de um corpo começa a ressoar, ecoa, continua a ecoar e cala-se. Fez-se silêncio… a voz esmoreceu… Já não é voz. Era futura antes de ecoar e não podia ser medida porque ainda não existia, e agora também não é possível medi-la porque já se calou. Nesses instantes em que ressoava era comensurável, porque então existia uma coisa suscetível de ser medida. Mas mesmo nesses momentos não era estável. Ia esmorecendo e passava. Não seria por acaso esta instabilidade ou movimento o que a tornava mensurável? Com efeito, ao esmorecer, estendia-se por um espaço de tempo pretérito onde seria possível medi-la, já que o presente não tem nenhuma extensão.
Porém, se então era possível medi-la, suponhamos que outra voz começou a ressoar e ainda ressoa numa vibração contínua e de igual intensidade. Meçamo-la enquanto ela ressoa, pois, desde que cesse de vibrar, já será pretérita e não a poderemos medir. Meçamo-la por conseguinte e calculemos a sua duração. Todavia, ainda soa, e não a podemos avaliar senão desde o seu princípio – em que começou a ressoar – até o fim, quando emudecer, porque todo o intervalo se mede desde um certo ponto até um limite determinado. Por este motivo, a voz que ainda não terminou não é suscetível de ser comensurada, de modo que possamos calcular a sua longa ou breve duração. Nem podemos afirmar que seja igual a alguma outra, ou que a sua relação seja simples ou dupla, nem estabelecer qualquer outra proporção. Logo que essa voz cesse, fica destituída de existência. Então, de que modo poderá ser avaliada? Com efeito, medimos os tempos, mas não os que ainda não existem ou já passaram, nem os que não têm duração alguma, nem os que não têm limites. Não medimos, por conseguinte, os tempos futuros nem os passados, nem os presentes, nem os que estão passando. Contudo, medimos os tempos!
35. Este verso “Deus Creator omnium”,de oito sílabas, vai-se alternando com sílabas breves e longas. Quatro breves: a primeira, terceira, quinta e sétima. Estas são simples, comparadas com as quatro longas: a segunda, quarta, sexta e oitava. Cada uma destas tem o dobro de tempo com relação às outras. Assim o noto pelo testemunho dos sentidos. Segundo o que estes me revelam, meço a sílaba longa pela breve e vejo que a longa contém duas vezes a breve. Mas quando soa uma após a outra, se a primeira é breve e a segunda é longa, como hei de reter a breve?
Como hei de aplicar a breve à longa para medir esta, de modo a poder averiguar que a longa tem o dobro de duração? Não é verdade que a longa só começa a ressoar no momento em que a breve tenha cessado?
Também não meço esta mesma sílaba longa enquanto é presente, pois só me é possível medi-la depois de terminada. E, uma vez terminada, passou. Que medirei eu, portanto? Onde está a sílaba breve que me serve de medida? Onde está a longa para eu a medir? Ambas ressoaram, voaram, foram passando e já não existem. Meço-as e, com a certeza que me pode dar a percepção de um sentido, respondo confiadamente que no espaço de tempo uma é simples, outra é dupla. Nem posso dizê-lo senão porque passaram e terminaram. Não as meço, portanto, a elas, que já não existem, mas a alguma coisa delas que permanece gravada na minha memória.
36. Em ti, ó meu espírito, meço os tempos! Não queiras atormentar-me, pois assim é. Não te perturbes com os tumultos das tuas emoções. Em ti, repito, meço os tempos. Meço a impressão que as coisas gravam em ti à sua passagem, impressão que permanece, ainda depois de elas terem passado. Meço-a a ela enquanto é presente, e não àquelas coisas que se sucederam para a impressão ser produzida. É a essa impressão ou percepção que eu meço, quando meço os tempos. Portanto, ou esta impressão é os tempos ou eu não meço os tempos.[10]
Quando medimos os silêncios e dizemos que aquele silêncio durou o mesmo tempo que aquela voz, não dirigimos o pensamento para a duração da voz, como se ressoasse ainda, a fim de podermos avaliar no espaço de tempo o intervalo dos silêncios? Com efeito, quando, sem abrir a boca nem pronunciar palavra, fazemos mentalmente poemas, versos ou qualquer discurso, ou medimos quaisquer movimentos, comparamo-los pelos espaços de tempo e achamos a relação de uns com outros como se os pronunciássemos em voz alta.
Se alguém quisesse soltar uma palavra um pouco mais longa e regulasse com o pensamento a sua duração, esse delimitaria o espaço de tempo em silêncio. Confiando-o à memória, começaria a produzir aquela palavra que soa, até atingir o limite proposto. Mas essa voz ressoa e ressoará, pois a parte que esmoreceu sem dúvida já ressoou e o que resta soará ainda. Vai assim emudecendo pouco a pouco, enquanto a presente atenção do espírito vai lançando o futuro para o passado. Com a diminuição do futuro, o passado cresce até ao momento em que seja tudo pretérito, pela consumição do futuro.
28 O TEMPO E O ESPÍRITO
37. Mas como diminui ou se consome o futuro, se ainda não existe? Ou como cresce o pretérito, que já não existe, a não ser pelo motivo de três coisas se nos depararem no espírito onde isto se realiza: expectação, atenção e memória? Aquilo que o espírito espera passa através do domínio da atenção para o domínio da memória.
Quem, por conseguinte, se atreve a negar que as coisas futuras ainda não existem? Não está já no espírito a expectação das coisas futuras? Quem pode negar que as coisas pretéritas já não existem? Mas está ainda na alma a memória das coisas passadas. E quem contesta que o presente carece de espaço, porque passa num momento? Contudo, a atenção perdura, e através dela continua a retirar-se o que era presente. Portanto, o futuro não é um tempo longo, porque ele não existe: o futuro longo é apenas a longa expectação do futuro. Nem é longo o tempo passado porque não existe, mas o pretérito longo outra coisa não é senão a longa lembrança do passado.
38. Vou recitar um hino que aprendi de cor. Antes de principiar, a minha expectação estende-se a todo ele. Porém, logo que o começar a minha memória dilata-se, colhendo tudo o que passa de expectação para o pretérito. A vida deste meu ato divide-se em memória, por causa do que já recitei, e em expectação, por causa do que hei de recitar. A minha atenção está presente e por ela passa o que era futuro para se tornar pretérito. Quanto mais o hino se aproxima do fim tanto mais a memória se alonga e a expectação se abrevia, até que esta fica totalmente consumida, quando a ação, já toda acabada, passar inteiramente para o domínio da memória.[11]
Ora, o que acontece em todo o cântico, isso mesmo sucede em cada uma das partes, em cada uma das sílabas, em cada ação mais longa – da qual aquele cântico é talvez uma parte – e em toda a vida do homem, cujas partes são os atos humanos. Isto mesmo sucede em toda a história dos filhos dos homens,[12]da qual cada uma das vidas individuais é apenas uma parte.
Excertos de: SANTO AGOSTINHO. Confissões. SP: Editora Nova Cultural, 1999.
[1] O tempo é um ser de razão com fundamento na realidade. Santo Agostinho estuda o problema do tempo apenas sob o aspecto psicológico: como é que nós o apreendemos. Não o estuda sob o aspecto ontológico: como é em si mesmo. Para este último caso, teria de o considerar indivisível. (N. do T.)
[2] O tempo não é apenas uma sucessão de instantes separados. É um contínuo, e, como tal, é indivisível, O tempo, para ser estudado na sua metafísica, não se deve dividir no “antes e no “depois , mas considerar-se na sua síntese de continuidade. (N. do T.)
[3] Assim o afirmava Eratóstenes: “O tempo é o curso do Sol”. Igual teoria se atribui a Platão no livro Timeu. A este se refere o texto. (N. do T.)
[4] Os romanos mediam o dia de um nascer do Sol até ao outro nascer do Sol. Os judeus, ao contrário, contavam-no de um pôr do Sol até ao outro pôr do Sol. (N. do T.)
[5] Santo Agostinho pretende distinguir o tempo astronômico do tempo metafísico e do tempo psicológico. Aqui refere-se ao astronômico. (N. do T.)
[6] O tempo psicológico é a impressão do antes e depois que as coisas gravam no espírito. E o sentimento de presença das imagens que se sucedem, sucederam ou hão de suceder, referidas a uma anterioridade. (N. do T.)
[7] Santo Agostinho não emprega o termo espacial de extensão, para se referir ao tempo. Em vez daquele vocábulo, usa distensão. (N. do T.)
[8] No conceito de tempo há dois elementos: um transitório (sucessão) e outro permanente (duração). O tempo psicológico não é mais do que a percepção dessa sucessão contínua no campo da consciência com aspecto de localização e de anterioridade. (N. do T.)
[9] SI 61, 9; 99, 3.
[10] É mérito de Santo Agostinho ter posto em relevo, de maneira definitiva, o caráter psicológico do tempo, o seu pertencer à consciência (J. M. Le Blond, 5. J., Les Conversions de Saint Augustin, Paris. 1950, p. 256). (N. do T.)
[11] A atenção na sua função de síntese liga o passado ao futuro. (N. do T.)
[12] S130, 20.