Categoria: sistema

Comentários sobre Reflexões sobre a Linguagem, de Noam Chomsky (SEGUNDA PARTE)

Chomsky versus Quine

Na segunda parte da obra Reflexões sobre a Linguagem[1], no capítulo 4, Problemas e Mistérios no Estudo da Linguagem Humana, notamos que o próprio título já é argumentativo na medida em que afirma que existem problemas e mistérios quando se estuda o fenômeno da linguagem. Problemas podem ser solucionados, enquanto que, seres humanos que somos, devemos contemplar os mistérios, impotentes em resolvê-los, pelo menos, no estágio em que se encontra a lingüística.

Chomsky cria a figura de um cientista C, um “alienígena” que vem estudar os seres humanos como organismos no mundo natural. Ele é isento de nossos sistemas de valores, de nossas convicções e, de modo totalmente objetivo, empregando o método hipotético-dedutivo, vai poder checar as propostas chomskianas a respeito da linguagem. Parece-nos que C é o alter-ego do autor que, dessa forma, pode se apresentar com os atributos de objetividade e de imparcialidade para demonstrar a teoria que ele próprio havia formulado. C não aparece pela primeira vez nesta obra. Quine que será um dos críticos do trabalho de Chomsky já se refere a ele em um artigo de 1969, Reply to Chomsky, que integra a obra de Davidson e Hintikka, Words and Objections: Essays on the Work of W. V. Quine. Na realidade, Quine é considerado o filósofo norte-americano mais influente da segunda metade do século XX, continuador do pensamento de Russel e Whitehead, preocupando-se com investigações no campo da semântica e em suas relações com a lógica formal. Ele teve sua reputação consolidada com a obra Word and Object, de 1960, no entanto, tem recebido críticas pelo behaviorismo explícito que adotava naquele momento, apesar de em 1969, tentar se afastar do modelo skinneriano.

Chomsky parece “se ofender” com Quine que considera “loucura” alguns postulados de nosso autor que adotaria uma “doutrina dogmática“, desprovida de “critérios’’. Chomsky não se contém e, frequentemente durante sua resposta a Quine, o provoca. Assim, as suas restrições quanto ao método e universais linguísticos e a sua acusação genérica de loucura são completamente desprovidas de força. Mais adiante, ele continua: “Prosseguindo um pouco na discussão metodológica de Quine, consideremos novamente Quine (1972). Nesse artigo, Quine levanta objeções àquilo que classifica ‘atitude niilista em relação às disposições’. Isto parece-lhe tão estranho que acrescenta: ‘Gostaria de pensar que algo me escapa’. É de fato verdade! Basta lermos as minhas afirmações por ele citadas para compreendermos o que lhe escapa. A sua crença de que eu ‘rejeitei disposições’ fundamenta-se na minha crítica da sua definição de linguagem como um ‘complexo de disposições existentes destinadas ao comportamento verbal, no qual os falantes de uma mesma língua se assemelham necessariamente uns aos outros’.

A respeito da aquisição da linguagem, Chomsky critica a posição de Quine que afirma que a criança aprende a maior parte da língua ao ouvir os adultos e ao tentar imitá-los, postura evidentemente eivada da teoria E – R comportamentalista, e que deixa pouca abertura à produtividade criativa da linguagem, proposta por Chomsky, apesar de não poder comprová-la: Aquilo que designei algures por ‘aspecto criador da utilização da linguagem’ continua a ser para nós um mistério tal como era para os cartesianos que o discutiram, em parte, no contexto do problema dos ‘outros espíritos’.

Além disso, também critica reiteradamente a definição de língua de Quine, como um simples complexo de disposições para responder a questões, por exemplo, do tipo “dúvida-concordância” que seria um processo, um empreendimento contínuo de aprendizagem manifesta. Existem, é verdade,  disposições inatas para Chomsky, são as estruturas inatas para a aprendizagem; só que ele não pode considerar que estas disposições apresentem em seu desenvolvimento uma organização tão simplista e limitadora. Se isso fosse verdade, declara Chomsky, se uma língua é um complexo de disposições para responder numa série normal de circunstâncias, então não seria finita (a não ser que incluísse todas as línguas) mas também extremamente pequena. […] note-se que nas minhas observações não existe qualquer ‘rejeição das disposições’ mas sim de afirmações falsas ou vazias sobre disposições como, por exemplo, a afirmação de que uma língua é um complexo de disposições existentes destinadas ao comportamento verbal.

Não são apenas os trabalhos de Quine que merecem a crítica de Chomsky, todos os que, de uma forma ou de outra, se opõem à sua teoria vão sendo rechaçados por sua argumentação. E o que é interessante é que esta parte de sua obra participa do grande embate de ideias que tem caracterizado o último quartel do século XX. Finalizamos com o tributo que Chomsky presta a Descartes, considerado precursor, guardadas as devidas proporções, de suas investigações científicas: Também Descartes não poderia dizer se era um ‘cientista’ ou um ‘filósofo’ no sentido em que muitos contemporâneos utilizaram esses termos, restringindo a filosofia a um gênero de análise conceitual. Ele era, sem dúvida, ‘cientista’ e ‘filósofo’. O seu estudo das ideias inatas e da mente estão agora em causa. Como cientista pensava que podia explicar muitos aspectos do comportamento humano, e tudo o mais, em termos de príncípios mecânicos. Sentiu-se, porém, levado a postular uma segunda substância cuja essência explicaria algumas observações sobre os seres humanos (ele e outros). É justamente este afã, esta necessidade de explicar todos os fenômenos da natureza, aí incluindo-se os problemas que envolvem as teorias da aprendizagem, especificamente a aprendizagem da linguagem e sua ligação com a mente, com o espírito que tornam fundamentais os trabalhos de filósofos-cientistas como Chomsky.

 

 

[1] Chomsky, N. Reflexões sobre a linguagem. Lisboa: edições 70, 1975.

Comentários sobre Prolegômenos a uma Teoria da Linguagem de Hjelmslev. Nílvia Pantaleoni

Comentários sobre Prolegômenos a uma Teoria da Linguagem[1]

Refletir sobre a obra de Louis Hjelmslev, Prolegômenos a uma teoria da linguagem, exige certo esforço, contudo, à medida que uma nova leitura se processa consegue-se vislumbrar aos poucos o edifício da teoria da linguagem que, no último capítulo, o autor nos deixa entrever, quando afirma que precisara se basear provisoriamente num ponto de vista imanente ‑ estabelecendo como objeto a constância, o sistema e a função interna da linguagem ‑ com a finalidade maior de atingir o domínio do saber humano em sua totalidade. Passo a comentar as definições de linguagem, texto e língua; sistema, norma e uso; o signo do ponto de vista saussuriano que subsidiou a noção de signo hjelmsleviano; plano de expressão e plano de conteúdo.

A linguagem, para Hjelmslev, é considerada como um princípio retor, um princípio de categorização do mundo. A função do linguista é trabalhar a linguagem que se define por ser um texto. O texto, por sua vez, é considerado como uma sintagmática que se projeta em todas as direções e em todos os sentidos. Já “uma língua pode ser definida como uma paradigmática cujos paradigmas se manifestam por todos os sentidos”, é um sistema de signos, adequada para formar novos signos. Ela se ordena com uma porção de figuras – unidades menores do sistema ‑ e de signos – unidades do texto. A língua é concebida como uma combinatória, é interdependência entre termos, quer dizer, não se tem um sem os outros. É nesse sentido que Hjelmslev considera a língua como texto infinito, cuja estrutura precisa ser definida; ela é uma rede de funções semióticas. A cada função semiótica são associados dois funtivos que são os dois argumentos que a função coloca em relação: a forma do conteúdo e a forma da expressão.

O sistema de uma língua (ou seu esquema) é uma realidade puramente formal; é o conjunto de relações abstratas que existem entre seus elementos, independentemente de toda caracterização fonética ou semântica destes. O exemplo que Hjelmslev apresenta é do r francês que se define, no sistema, pelo modo como se combina, na sílaba, com os outros fonemas. O sistema é ordenado pelo processo que é inato, enquanto que  próprio sistema é aprendido, é social. A norma, por outro lado, é o conjunto de traços distintivos que, na manifestação concreta de um sistema, permitem reconhecer os elementos uns dos outros. Continuando com o exemplo do r, do ponto de vista da norma, ele se define como uma consoante vibrante, pois isto já é suficiente para distingui-lo de qualquer outro fonema francês. O uso linguístico, portanto, são os fenômenos semântico-fonéticos por meio dos quais o sistema se manifesta de fato. A língua atual que nós conhecemos é sui generis, é aquilo que no momento está em uso. A norma representa uma espécie de abstração operada com relação ao uso.

Para Saussure e os linguistas da escola de Praga, o signo é visto pelas suas funções externas (palavras e relações de palavras, umas portadoras de significado, imagem mental, enquanto outras são apenas relacionais), ele representa então o plano das ideias mais o plano dos sons. Quando se trata do signo hjelmesleviano, é necessário estabelecer as definições de função e de funtivo: função é a dependência que preenche as condições de uma análise – descrição de um objeto através das dependências homogêneas de outros objetos – e funtivo é o objeto que tem uma função em relacionamento a outros objetos Nesse sentido, para Hjelmslev, o signo é visto como dois funtivos: conteúdo e expressão (plano do conteúdo e plano da expressão). A expressão é do sistema; o conteúdo é do processo. O sentido é amorfo, podendo ser conformado de maneiras diferentes nas diferentes línguas. O que determina a sua forma são as funções da língua. A função de um signo enquanto ser signo de algo é a função entre a forma e a substância. sendo que sua função é significar, ele não tem significação; toda significação surge no contexto situacional pleno que a língua estabelece. O signo tem uma função constante porque todas as línguas têm um processo, mas diferenciam-se pelo sistema.

Para abordar a distinção entre plano de conteúdo e plano de expressão, é necessário retomar um dos postulados de Saussure que prega: a língua é forma, não é substância. O que distingue uma língua das outras é a sua configuração, a sua forma; enquanto que a substância (as significações, do ponto de vista semântico) é passível de ser traduzido para outras línguas. A partir da distinção saussuriana, Hjelmslev, postula que cada língua deve ser caracterizada não só no plano da expressão (pelos sons, pela forma, que ela escolhe para transmitir a significação), mas também no plano do conteúdo (pela maneira como apresenta a significação) pois os signos de uma língua raramente têm equivalentes semânticos exatos em outra. Uma língua não é um jogo de rótulos, não é simplesmente uma nomenclatura, é necessário descrevê-la também no plano do conteúdo.

Finalizando, é preciso acrescentar que a teoria de Helmslev abrange todas as linguagens e incorpora todos os tipos de texto, o sistema pode ser transcodificado numa tela, numa fala, em gestos, em qualquer linguagem de sinais. Contudo, o linguista pode e deve concentrar toda a sua atenção sobre as línguas ‘naturais’ e deixar para outros especialistas, principalmente para os lógicos, a tarefa de estudar as outras estruturas semióticas.


[1] HJELMSLEV. L.  Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Tradução: J.Teixeira Coelho Netto. SP: Perpectiva, 1975.