Categoria: interação verbal

BALANÇO DA DISCIPLINA “ORALIDADE E ESCRITA: FUNDAMENTOS E ENSINO”

Oralidade e escrita programa 2015 é uma disciplina que abarca muitos conteúdos e muita possibilidade de prática. Acontece que a carga horária restringe-se a 32 horas e se divide em 8 aulas. Decisões precisam ser tomadas para que haja um real aproveitamento tanto por parte dos alunos quanto por parte da professora que também se beneficia com as interações.

Por sorte, a bibliografia básica é simples se levamos em consideração o estilo dos teóricos envolvidos com a Análise da Conversação, mesmo assim, ou por causa disso, compõe-se de obras extremamente pertinentes. Nesse sentido, as aulas da disciplina (final de fevereiro – início de abril de 2015) foram desenvolvidas com ênfase na prática, ou seja, os alunos foram, a partir da primeira aula, a campo para a constituição, cada um individualmente, de um corpus para servir de ponto de partida e de referência para os conceitos implicados na teoria.

Selecionamos o gênero entrevista para ilustrar os conceitos da Análise da Conversação. Como a turma era composta por 11 alunos, foram realizadas 11 entrevistas. Cada entrevista foi gravada e apresentada para o restante da turma. Cada um fez a transcrição de sua entrevista empregando as normas do projeto NURC.

No decorrer das aulas, os alunos e a professora procuraram discutir as características das modalidades oral e escrita da língua como parte de um continuum tipológico, tendo como perspectiva os diferentes gêneros textuais; analisar as produções discursivas tendo por base pressupostos da Análise da Conversação; e refletir sobre as possibilidades de operacionalizar o estudo da interação verbal no ensino da Língua Portuguesa. Para tanto, cada aluno ficou responsável por um tema relacionado aos objetivos da disciplina: variação linguística: dialetos, registros e norma; transformações no fenômeno sociolinguístico da gíria; como falam as pessoas cultas; a dimensão social das palavras; textos construídos na internet; o texto oral em sala de aula; tópico discursivo; turno conversacional; marcadores conversacionais; procedimentos de reformulação: paráfrase; procedimentos de reformulação: correção.

É esperado que os estudos da Análise da Conversação tomem como ponto de partida um texto falado. Tenho o hábito de, no decorrer das aulas, lançar para os alunos o desafio de transformar um texto de concepção escrita e de modo de produção também escrito em um texto de concepção falada e de modo de produção também falado. Tenho observado que essa atividade leva à percepção da riqueza da fala e das múltiplas possibilidades de uma mesma informação ou de um mesmo assunto ser desenvolvido. O desafio, realizado por duplas de alunos, constituiu-se, em transformar INSTRUÇÕES PARA MONTAGEM DE PASTA em DIÁLOGO – COMO SE MONTA UMA PASTA.

Foram realizados seminários para discussão das atividades e dos conceitos apresentados por autores fundamentais para nossa disciplina. Estas são as capas das edições que usei:MARCUSCHI DA FALA PARA A ESCRITA, KERBRAT-ORECCHIONI e Captura de Tela 2015-04-22 às 12.00.51.

Finalmente, para o trabalho de conclusão da disciplina (excertos, com permissão dos alunos, podem ser conferidos), a turma foi dividida em quatro duplas: Vanessa e Isac; Antônio e Willian; Juliana e Helton; Mônica e Mariana; e um trio:Edson, Elenilton e Marcos. Agradeço a toda turma o empenho e a colaboração em todas as nossas interações.

Arquivos de minha dissertação de mestrado: AS CARTAS DE RUY BARBOSA A MARIA AUGUSTA E DE MONTEIRO LOBATO A PUREZINHA: A INTERAÇÃO POR ESCRITO E AS METÁFORAS DO AMOR

INICIO DISSERTAÇÃO

INTR_CAP_1

QUARTO CAPÍTULO

CONCLUSÃO. Dissertação

BIBLIOGRAFIA.DISSERTAÇÃO

Anexos DISSERTAÇÃO

A TROCA DE TURNOS LOBATO

HISTÓRIA DOS CORREIOS

 

Variedades linguísticas: norma, correção e adequação. Apontamentos das aulas de Comunicação Empresarial (1)

I – Variedades linguísticas: norma, correção e adequação

Nílvia Pantaleoni

O uso adequado e eficaz da língua, nas mais variadas situações de comunicação, pressupõe uma competência pragmático-utilitária que emerge, não só da utilização de normas e convenções, mas também da conveniência de se distinguir entre uma variedade erigida em norma-padrão, institucionalmente reconhecida como tal, e outras variedades geográfica e socialmente diferentes e legítimas.[1]

 

A variação linguística existe, não podemos ignorar sua riqueza. A marca da diversidade deve ser considerada como algo positivo e ser incorporada aos nossos hábitos linguísticos à medida que nos adequamos ao momento interativo, ou seja, à situação comunicativa. Aliás, a adequação à situação comunicativa incorpora-se entre as máximas conversacionais, regidas pelo princípio de cooperação postulado pelo filósofo da linguagem H.P. Grice.

Grice observa que os falantes seguem um princípio cooperativo geral que orienta os usos eficientes da língua. Numa conversa e, podemos também dizer, numa interação por escrito, ou via internet, os interlocutores guiam-se – mesmo que disso não tenham consciência – por máximas da qualidade, da quantidade, da relevância e do modo. É evidente que elas são frequentemente desobedecidas, mas, num plano ideal, os interlocutores são cooperativos.

Como se dá essa cooperação entre os interlocutores? Como eles podem contribuir com o outro?

Falando só o que é verdadeiro, ou o que eles imaginam que seja verdade (máxima da qualidade); contribuindo com a informação necessária, não mais do que isso (máxima da quantidade); além disso, suas contribuições devem ser relevantes para o propósito da comunicação (máxima da relevância); e, o que mais nos interessa no momento, já que estamos tratando da variedade, da adequação e da correção linguística, ele deve ser claro, evitando a ambiguidade e a falta de clareza (máxima do modo).

Não é adequado o médico que, durante uma consulta, num posto de saúde, usa seu incompreensível jargão para se dirigir ao seu paciente, completamente leigo em assuntos de medicina. Ele será menos adequado ainda, e também extremamente inconveniente se tentar imitar, muitas vezes jocosamente a variante linguística de seu paciente. A adequação à situação comunicativa é perfeitamente possível, e, na maioria dos casos, esta adaptação acontece pelo fato de existir uma espécie de linguagem comum que todos os falantes dominam.

Dino Preti[2] afirma que uma linguagem comum do ponto de vista geográfico, usada, em tese, pelos falantes urbanos de cultura média, empregada no dia-a-dia, contribui para a unificação dos falares regionais, porque é compreensível em todas as regiões do país.

Nas aulas de Comunicação Empresarial, o que deve ser estudado? O que é adequado? Com certeza, não se ensina gramática normativa. Pressupõe-se que o aluno fale e escreva com segurança, pois deve dominar essa linguagem comum.

O aluno deve sentir-se seguro para se expressar em seus trabalhos por escrito produzindo, por exemplo, resumos, resenhas, relatórios, projetos, isto é, gêneros onde predominam seqüências tipológicas ou tipos textuais expositivo-argumentativos em geral, preocupando-se com a clareza, a concisão, a organização de seu texto, não perdendo de vista o interlocutor de seu texto que, na vida universitária, é quase sempre o professor e também seus colegas.

Também nas situações comunicativas orais, isto é, em seminários, apresentações de trabalhos e debates, alguns cuidados não só com o falar, como também com o agir em público devem ser levados em consideração. Para isso existem técnicas; a simpatia  de quem está ouvindo liga-se com o ethos de quem está falando. Falar bem, em voz alta, clara, pausada e convincente, por exemplo, faz parte da adequação à situação comunicativa de um seminário que os alunos preparam antecipadamente.

Participar de discussões e debates não é entrar num bate-boca para defender a todo custo seu ponto de vista, também não é ficar calado, alheio ao que acontece, querendo que tudo termine logo, porque nada daquilo lhe interessa. Participar de uma discussão é querer demonstrar seu ponto de vista aos seus interlocutores e, mais que isso, é tentar persuadi-los com a força de sua argumentação. Finalmente, também é saber ouvir e respeitar o ponto de vista do outro.

Nas aulas de Comunicação Empresarial, você aprimora suas técnicas de leitura, interpretação e produção de textos. Se você tem dificuldades específicas para se expressar por escrito, ou mesmo, oralmente, não perca a oportunidade de se dirigir ao professor que sempre tem material-extra com conteúdos específicos e exercícios que podem eliminar dúvidas. Não podemos ignorar que a educação linguística de qualquer falante nativo inicia-se na esfera íntima do lar, continua nas esferas públicas, abertas. Finalmente, o espaço ideal para o desenvolvimento da educação linguística são as instituições de ensino que aperfeiçoam, hierarquizam e rotulam as mais diversas atividades lingüísticas sociocomunicativas.

O que importa em relação à ética linguística que procuramos observar na instituição escolar, esperando que continue em qualquer situação nas diversas esferas das atividades humanas, é o respeito que devemos ter com o direito linguístico que todo cidadão possui de falar sem ser discriminado e, como alunos que têm como meta o aprimoramento de competências e a aquisição de novas habilidades, importa o crescimento como leitores, falantes e autores na língua que lhes pertence por direito de nascimento.

A língua portuguesa não é fácil nem difícil, mas é um idioma com potencialidades tamanhas que nem os imortais acadêmicos conhecem integralmente. Uma parcela de sua riqueza, de sua diversidade a qual estamos acostumados todos os dias, em todos os lugares, nas mais diversas situações, será tema de outros textos de Comunicação Empresarial, pelo menos, por dois motivos: como futuro profissional, o conhecimento da heterogeneidade da língua portuguesa é fundamental. Por isso, citando Evanildo Bechara, devemos ser poliglotas em nossa própria língua; e como falantes nativos de português que têm consciência de que devem ser cooperativos com seus interlocutores, devemos respeitar a situação comunicativa em que estamos inseridos.

Com os amigos, no trabalho, em casa, na rua, nos corredores da universidade, na sala de aula, nos trabalhos escritos, em uma comunicação mais formal, nos bate-papos da Internet. Cada tempo, cada ambiente, cada situação pede o uso de uma variação. O importante é que não nos esqueçamos da linguagem comum, informal, usada, em tese, pelos falantes urbanos de cultura média, empregada no dia-a-dia, para as situações mais frequentes de nosso cotidiano. Também é importante ter consciência de que a leitura de textos acadêmicos e a produção de trabalhos que o estudante universitário realiza são orientados pela variedade considerada culta da língua portuguesa, quando se emprega a linguagem dita formal.


[1] Guimarães, E. in: Dino Preti e seus temas: oralidade, literatura, mídia e ensino. SP: Cortez, 2001.

[2] Preti, Dino. Sociolinguística: Os Níveis de Fala. SP: Cortez, 2000.

A correspondência por escrito. Quarta parte. Nílvia Pantaleoni

A correspondência por escrito
 (Quarta Parte da Introdução da Dissertação de Mestrado concluída em 1999).
Nílvia Pantaleoni

Como a área de interesse de nossa dissertação não abrange as cartas ficcionais presentes, não só nos romances epistolares, mas em inúmeras narrativas, deixaremos de lado este rico filão, projetando para o futuro, quem sabe, uma pesquisa nesta área. Existe um campo vastíssimo a ser explorado envolvendo a temática das cartas. É necessário, pois, que delimitemos com exatidão o objeto da presente pesquisa.

Nossa proposta é uma análise exploratória de aspectos semânticos e pragmáticos das correspondências amorosas às noivas de duas figuras conhecidas no cenário social, político e literário brasileiro: Ruy Barbosa e Monteiro Lobato; uma leitura crítica de um manual de cartas de amor atual; e uma reconstituição da expressão do sentimento amoroso por meio de alguns textos literários fundamentais.

No primeiro capítulo, após definirmos epistolografia, trataremos das cartas de amor, fazendo uma leitura crítica de um manual de cartas de amor de nossos dias, salientando que, inúmeras vezes, amorosos do mundo todo, há muito tempo, pedem socorro às fórmulas prontas, representadas atualmente tanto pelos manuais quanto pelos cartões impressos. Em seguida, traçaremos um rápido percurso da constituição da expressão do sentimento amoroso a partir do Cântico dos Cânticos (século IX a.C.), do Antigo Testamento; passando pelo Banquete (século IV a.C.), de Platão; pela Arte de Amar, do poeta romano Ovídio (43 a. C.-18 d.C.); pela correspondência amorosa mais famosa da Idade Média, a de Abelardo e Heloísa (século XII);

Julie ou La Nouvelle Heloise. J.J. Rousseau
Julie ou La Nouvelle Heloise. de J.J. Rousseau

também nos deteremos nos transportes amorosos de Saint-Preux à Júlia, personagens criados por J.J. Rousseau (1712-1778) no romance epistolar Júlia ou A Nova Heloísa, abordando, principalmente, seu esclarecedor prefácio.

No segundo capítulo, empregando a abordagem interacionista que postula a interação verbal como a realidade fundamental da linguagem e que, de um ponto de vista pragmático, preocupa-se com os enunciados realizados em situações comunicativas particulares concretizadas, procuraremos estabelecer algumas estratégias que os remetentes das cartas empregam com a intenção de modificar ou conservar a informação pragmática das destinatárias, tendo em vista alimentar e aumentar o sentimento amoroso das mesmas. Para tanto, estudaremos o emprego dos vocativos epistolares, a utilização das máximas de polidez pelos missivistas e as estratégias empregadas para garantir a troca de turno.

No terceiro capítulo, fundamentando-nos nos trabalhos da semântica cognitiva que apresenta como um de seus postulados que conceitualizamos[1] o mundo usando a metáfora em tão larga escala que, muitas vezes, não temos consciência da existência de metáforas de nível básico que servem para categorizar o modo como o percebemos e o entendemos e que os valores de uma cultura são coerentes com a estrutura metafórica dos conceitos dessa cultura, realizaremos o levantamento das metáforas presentes nas declarações amorosas das cartas de amor dos, então, noivos Rui Barbosa e Monteiro Lobato, a partir da hipótese de que suas expressões metafóricas amorosas formam um sistema coerente com os modelos conceituais de amor que eles têm introjetados em suas mentes.

Na conclusão, procuraremos verificar a validade do estudo realizado, e, em anexo, apresentaremos: 1) um modelo de carta de amor extraído do manual analisado; 2) uma carta de Ruy Barbosa à Maria Augusta; e 3) uma carta de Monteiro Lobato à Purezinha.

Uma pequena digressão: meu interesse por cartas é muito antigo. Quando pequena, esperava com ansiedade o carteiro que passava por minha rua e entregava todos os dias, em casa, os jornais, os pacotes de livros que meu pai encomendava, as cartas que recebia. Sua figura era a do mensageiro que transportava a notícia, a palavra, as novidades. Ele passava à tarde, mais ou menos às duas horas, e, quando ele se atrasava, eu me preocupava. Os jornais eu lia, as cartas, não. Elas vinham lacradas e ninguém, a não ser o destinatário, meu pai, poderia abri-las. Esta interdição, evidentemente, aguçava minha curiosidade: aquele objeto fechado continha uma mensagem que só o dono podia conhecer. Este caráter particular da correspondência fazia dela algo precioso, secreto, proibido.

Quando chegava alguma carta para minha mãe, geralmente de algum parente, ela deixava que eu a abrisse e líamos juntas – com que prazer – o seu conteúdo. Com o passar do tempo, minha mãe me incumbiu de responder as cartas que um velho tio lhe escrevia: o tio Osório. Pela primeira vez, vi meu nome sobrescritado num envelope, encimado por “à gentil senhorita” Ele foi o meu primeiro correspondente, dele foram as primeiras cartas que recebi. Posso afirmar com segurança que não são apenas as cartas de amor que emocionam. Receber palavras de amizade, de carinho, saber que alguém distante pensou em você, deixou de lado suas atividades e sentou-se para enviar-lhe uma mensagem, mesma que curta, aquece o coração.

Passados tantos anos, e tantas cartas depois, ainda sinto um prazer muito grande ao abrir minha correspondência pessoal. Arrependo-me por ter queimado uma coleção delas, mais de cem, quando fiquei noiva, não do remetente das cartas. E são justamente as cartas de amor de outros remetentes para outras destinatárias que quero analisar. Este trabalho tem para mim, entre outras funções, a catártica pelo fato de me desvencilhar do teor daquelas outras cartas. Afinal uma carta de amor é sempre uma carta de amor e ‑ como escreveu Fernando Pessoa ‑ toda carta de amor é ridícula. Ridículas, risíveis, não importa. Queimei as minhas cartas, quando tinha vinte e poucos anos, hoje tenho cinquenta e quero remexer em suas cinzas, analisando as cartas de amor alheias antes de jogá-las ao vento definitivamente.


[1] Os termos da língua inglesa conceptualize, conceptual e conceptualization, empregados pela semântica cognitiva, foram traduzidos nesse trabalho por conceitualizar, conceitual e conceitualização.

A METÁFORA DO AMOR NA CORRESPONDÊNCIA DE RUI BARBOSA (Parte 4). Nílvia Pantaleoni

A METÁFORA DO AMOR NA CORRESPONDÊNCIA DE RUI BARBOSA (Parte 4)

 

Apresentação do corpus

Entre maio e novembro de 1876, Rui Barbosa já comprometido com Maria Augusta e frequentador assíduo de sua casa, parte para o Rio de Janeiro, vivendo distante da noiva o seu período de noivado Ilustre na Bahia, ele procura na capital do Império, o reconhecimento de seus pares, deixando documentada em sua correspondência à noiva toda dificuldade por que passava. É de interesse histórico, portanto, a leitura de suas cartas: a Corte e, também, Petrópolis servem de cenário, mas percebe-se que não o atrai a vida social e que ele se absorve inteiramente no trabalho, procurando conseguir meios para concretizar seu casamento, o que vai conseguir ainda em novembro de 1876.

A interação de fala proporcionada pela carta é, de certa forma,  sui generis pois os interlocutores, que passaremos a denominar R. (remetente) e D. (destinatária) têm entre eles o espaço e o tempo, duas coordenadas que aparentemente podem parecer antagonistas dos correspondentes, mas têm o papel de aliados, na medida em que permitem que haja uma pausa entre uma interação e outra que se revela muito fecunda, pois R. pode elaborar com mais cuidado sua mensagem, depois de ler, reler, refletir sobre as palavras da amada.

Infelizmente não temos as respostas que Maria Augusta enviava a Rui, teremos que nos contentar com os comentários dele a respeito das cartas dela para verificarmos em que medida a força ilocucionária de seu discurso afetava seus sentimentos e suas decisões.

As expressões linguísticas empregadas por R. para manifestar o amor que sentia por D. e os epítetos com que se referia a ela não fogem da construção metafórica. Sem metaforizar, é impossível a expressão de um sentimento, de uma emoção. No caso do sentimento amoroso, todo um sistema metafórico, organizado por meio de várias metáforas, vai sendo construído à medida que as cartas vão se sucedendo.

A partir do levantamento das expressões linguísticas empregadas pelo remetente para falar de seus sentimentos e da mulher que, ou os provocava ou os compartilhava, obtivemos uma série de métaforas que nos permitem fazer um mapeamento que tem como ponto central a metáfora que podemos considerar essencial para o R., que certamente não fala só por si, mas por toda uma sociedade da qual ele fazia parte:             A VIDA É UM DOM DIVINO. Esta metáfora de construção radial tem muitos raios que estabelecem sub-estrututras. As que nos interessam em nossa análise são as sub-estruturas da metáfora do amor e da mulher amada, levando-se em consideração que elas são conceptualizadas a partir de um determinado momento da vida de um homem de vinte e sete anos, extremamente culto e exigente consigo próprio, bacharel em Direito, defensor ferrenho dos valores de uma sociedade cristã- patriarcal, solitário e apaixonado. Seu conhecimento de mundo, suas crenças, seus preconceitos, seus valores são elementos fundamentais no estabelecimento desse sistema metafórico. Também, além de todos os elementos culturais apresentados não podemos nos esquecer das metáforas organizacionais construídas a partir de duas percepções antagônicas básicas O BOM E O MAU, que estabelecem que o que é bom está no alto, o que é mau está embaixo; o que é bom é limpo, o que é mau é sujo,  o que é bom é claro, o que é mau é escuro, o que é bom é são, o que é mau é doente, e assim por diante, que são essenciais para a conceptualização de inúmeros sistemas metafóricos.

As metáforas encontradas foram as seguintes: O amor é entrega, posse, união; o amor é puro; o amor é dor; o amor cura; o amor é luz, guia e proteção; o amor é o mais intenso sentimento; o amor é abençoado pela família; o amor é felicidade; a imaginação alimenta o amor.

  O AMOR É ENTREGA, POSSE, UNIÃO

…a tua vida é a de outra pessoa, que pôs todo o seu futuro no teu….

…como se em tua presença, ou dentro de ti mesma, estivessem passando os meus sofrimentos.

 Tua imagem, tua alma estão em mim como na presença…

 …onde o meu coração algum dia descanse, entre os teus carinhos…

 …aquela por quem eu vivo ainda; porque hoje não trabalho, não luto, não aspiro nada senão com ela, por ela e para ela; porque sem ela não aceito coisa nenhuma…

 …a minha alma e a tua, no seio dessa profunda melancolia, se comunicassem, de longe mesmo, invisivelmente por algumas dessas relações misteriosas com que Deus prende tantas vezes, sem sabermos como, os nossos destinos?

O AMOR É PURO

Aqueles abraços da despedida, longos, puros…

…e foi a pureza sem manchas de tua alma e do teu amor que me inspirou a coragem desta aventura.

…tu assim toda pureza, toda fé, toda virtudes, toda afetos, castos e sem mácula como o céu?

…de ter em tua alma sem mancha um ninho…

És cheia de bondade e brandura como o céu mesmo.

Pede-a muito a Deus… Ele não será surdo ao anjo que me deu.

…felicidade tranquila e pura de amores, como os nossos…

…a fé em nós mesmos e naquele que não criou debalde os anjos e as flores como tu.

…a mãe de família virtuosa, a esposa devotada e sem mácula, que hás de ser…

…ser-me-ia impossível acreditar num ato menos angélico de quem tão celeste é como tu.

Por que não há de dar Deus melhor destino às criaturas celestes como tu…

Não és tu que careces esforçar-te por te “tornares digna de mim”,… eu é que, hoje, toda vez que pratico o bem, penso em ti, procurando por ele, melhorando-me, corrigindo-me…

…como é lindo o nosso amor!… não tem nada de que corar, porque é puro, transparente…

O AMOR É DOR. O AMOR CURA

 …estremecidos abraços, cheios de pranto e de soluços…

…meu coração abismar-se-á todo na dor dessas recordações.

Mas ao menos sobre a tristeza desta saudade sem limite haverá um raio de luz…

para que no teu sofrimento haja uma gota de bálsamo!

 …estou ansiosíssimo por saber de ti… cuja ausência tanta amargura me tem causado.

 …longe de ti o meu coração não pode ter um instante de repouso.

…esta separação me traspassa, me extenua…

…os sentimentos sucessivos de teucoraçãomagoado e triste. 

…a tua lembrança é a companhia única deste meu ermo!

 A tua saudade ocupa-me a alma inteira..

O meu tédio, as minhas saudades não te careço eu descrever.

 …o teu coração as adivinhará, que as terá sentido, como se em tua presença, ou dentro de ti mesma, estivessem passando os meus sofrimentos.

…não te desampares deste modo a um sofrimento, que, exagerado, será funesto a nós ambos.

…cada palavra tua lançada no papel para mim é uma carícia abençoada para uma alma ferida…

…que a tua ausência amargamente agonia…

…aflições de uma tão sombria e deflorida mocidade como a minha tem sido.

 …assim como foi o bálsamo para a tua tristeza, está sendo também a mitigação do meu sofrimento!

Que consolo, pois, calcula não me tem sido a certeza de que as minhas letras…

…repassadas no amor e na mágoa das minhas saudades

  …foram para a tua dor esse calmante benfazejo, que te restituiu as forças, asserenou-te o espírito, e te está mostrando sem nuvens o horizonte das nossas esperanças!

 …cada meiga palavra tua é reanimadora como um celeste orvalho.

 …pensas desveladamente na minha situação, e quando podes, com o bálsamo da tua meiguice, buscas mitigá-la.

 Tinha apenas a tristeza inevitável de um desejo ardente, que espera com avidez, e sem outro consolo, a satisfação da sua sede.

…a minha vida, as minhas lágrimas…

 Estará o meu coração abafado sob o peso da sua agonia, e serei forçado a palestrar, a escutar estranhos, a ser amável, a rir.

Eu não tenho nada senão esta espécie de deserto aflitivo, onde te vejo à distância imensa…

 Ao meu coração é tão suave este prazer, que, se me fosse possível obedecer-lhe nisto, diariamente receberias cartas minhas.

Se, pois, nuvens de dor te passam pelo coração…não mas ocultes nunca…

 Desafoga sempre em mim tuas cismativas e sombrias saudades. Eu também as tenho e quantas!

Misturemo-las…e neste sofrermos juntos…

 ….às vezes transborda o sofrimento, e eu nem sempre posso ter a arte de encobri-lo.

É o refrigério único de que disponho; porque em roda de mim tudo me é desconsolador…

O que me tem salvado, porém, até agora é o teu amor.

 Senão o desespero absoluto com as suas desgraçadas consequências já me teria fulminado há muitos dias.

Como é triste…esta solidão assim, no meio da multidão indiferente e distraída…

 …sem uma alma que comparticipe conosco, ou entenda, sequer, o mais imperioso de todos os sentimentos do coração.

 …que o tempo não extingue nunca e o sofrimento redobra…

…o teu amor me protege, me conforta, me vela, me revive em todas as ocasiões críticas…

…todos os meus sofrimentos não servem senão para centuplicar o meu amor…

 De modo nenhum quero que padeças.

Tenho-te a ti como a mais melindrosa de todas as flores, e qualquer sopro receio que a ofenda.

 …eu serei feliz, feliz dessa felicidade amarga do sofrimento, que é a nutrição única das almas sem esperança.

 Não, eu não te acabrunharei mais com as sombrias cismas de minha alma.

O AMOR É LUZ, GUIA E PROTEÇÃO

Mas ao menos sobre a tristeza desta saudade sem limite haverá um raio de luz…

 Como ele iluminou os primeiros anos de minha vida…

 …tu serás a estrela da que me resta!

 Como ela foi o anjo da guarda do meu passado… 

…é a bênção dela ao nosso amor, a proteção do céu à nossa aliança, a garantia das esperanças de nós dois!

 Mas Deus decerto é cheio de bondade; e, se eu não sou digno do seu amparo, não no serás tu…

 É a minha esperança, o meu consolo, o meu arrimo nesta aventurosa tentativa.

 Mas a minha estrela, o meu norte, o meu anjo da guarda, o meu destino é tu…

 Não cesses as tuas súplicas ao Deus de tua crença, não as interrompas, a fim de que Ele abençoe e proteja essa tentativa…

 …encontraremos essa consolação extrema dos angustiados: — a mútua confiança, a esperança mútua, a fé em nós mesmos e naquele que não criou debalde os anjos e as flores como tu.

 ….por algumas dessas relações misteriosas com que Deus prende tantas vezes, sem sabermos como, os nossos destinos?

 …é o meu orgulho, a minha estrela, o meu anjo…

Não receies que eu desfaleça, ou caia. Deus não no há de permitir, não por mim, que nada valho, mas por ti, a quem indissoluvelmente prendeu-me pelo mais apaixonado e irresistível sentimento.

 É que tu és realmente a estrela da minha noite. Tua imagem, tua lembrança é um clarão do céu na minha vida, cada vez mais escura.

 Procurarei alegrá-la com a luz do teu amor.

O AMOR É O MAIS INTENSO SENTIMENTO

…eu te amo muito, muito, ilimitadamente, indizivelmente, inexcedivelmente, de todo o meu coração, de toda a minha alma, de toda a minha vida.

 …esta separação me traspassa…

 A tua saudade ocupa-me a alma inteira…

 …se eu não sou digno do seu amparo, não no serás tu…tu assim toda pureza, toda fé, toda virtudes, toda afetos, castos e sem mácula como o céu?

…o teu amor é a minha felicidade suprema e a minha suprema soberbia.

 …o meu mais íntimo e veemente desejo? Se não receasse ofender-te, eu dir-te ia que a minha impaciência é ainda mais violenta e imperiosa que a tua.

 …uma cara esperança da minha alma, nutrida, nutrida, nutrida longo tempo com o meu amor, a minha vida, as minhas lágrimas…

…te amo com uma energia e uma ternura, que absorvem ao mesmo tempo, o meu coração, o meu espírito, a minha existência toda…

…do meu amor, da minha fidelidade e da minha constância tenho-te dado já demonstrações que se não excedem….

 …o mais imperioso de todos os sentimentos do coração.

 …prendeu-me pelo mais apaixonado e irresistível sentimento…

 Por mais que te diga, tem sempre mais que te dizer; e, quando nada tivesse, dir-te-ia cem, mil, um milhão de vezes o quanto, o como, o quão eternamente ama-te…

 …todos os meus sofrimentos não servem senão para centuplicar o meu amor; e, sejam quais forem os derradeiros resultados…

 …nunca hesites sobre os meus sentimentos, que para contigo são cada vez mais apaixonados.

O AMOR É FELICIDADE, É ABENÇOADO PELA FAMÍLIA

Teu nome…é o nome da minha mãe.

…o nome de minha Mãe, que tu tens..

…tudo isso, a meus olhos, desbota-se em comparação da felicidade íntima, suavíssima, inesgotavelmente consoladora …

Bendito esse prazer…

…o teu amor é a minha felicidade suprema e a minha suprema soberbia.

…como me sinto feliz. é como se acariciasses a minha alma; encostada a teu seio, com a melodia da tua voz, a umidade dos teus beijos, a brandura das tuas mãos, o contato dos teus cabelos perfumados.

Esta bondade, tão do céu, em que te vais cada vez mais vivamente distinguindo, zela-a, apura-a sempre; porque dela é que vem essa felicidade tranquila e pura de amores, como os nossos…

…a mãe de família virtuosa, a esposa devotada e sem mácula…

…nosso amor…não tem uma reserva, um segredo onde não possa penetrar sem acanhamento nosso o olhar de nossos amigos e de nossos Pais.

…as cartas, que te escrevo, são para eles também; porque nós não trocamos palavra que eles não possam ouvir.

A IMAGINAÇÃO ALIMENTA O AMOR

Contemplo naquela intimidade incessante e afetuosa a imagem viva de nossa felicidade comum de há poucos dias, interrompida agora.

Mas os olhos da alma, que incessantemente se nutrem de tua imagem distante…

…a tua lembrança é a companhia única deste meu ermo!

…não sabem adivinhar daqui a situação de tua vida…

Eu estava sozinho, recolhido no meu coração, e pensava ternamente em ti.

…uma cara esperança da minha alma, nutrida, nutrida, nutrida longo tempo com o meu amor, a minha vida, as minhas lágrimas…

…não imaginas como me sinto feliz…

Lembro-me de ti, e adoro-te em minha alma, já que nada mais por ora me é possível.

Seria preciso que a alma tivesse o poder maravilhoso de criar momentaneamente uma expressão particular para cada um desses aspectos caprichosos e indescritíveis, com que a paixão se revela em nós durante o seu desenvolvimento crescente e indefinido.

Vi, já em ti, por uma encantadora antecipação, a mãe de família virtuosa, a esposa devotada e sem mácula, que hás de ser…

É tão cheio de idealidade e adoração o meu amor por ti…

Conclusão

O conceito de mulher amada para o R. forma o que George Lakoff (Women, Fire, and Dangerous Things, 1980) chama de “Cluster Model” (modelo em cacho) que preconiza para um modelo uma série de conceitos. No nosso caso, a mulher amada é o anjo, com todas as implicações que este conceito apresenta de bondade, pureza, guia, proteção, mensagem ( ver acima as metáforas “O amor é puro”, “O amor é luz, proteção, guia”). A mulher amada é a prometida de mãos brandas, cabelos perfumados, voz melodiosa, beijos úmidos que tocam a sua alma. Nunca o R. vai declarar que o seu corpo participa, deseja a matéria, pois a sua noiva continua sendo a mulher-anjo “…toda pureza, toda fé, toda virtudes, toda afetos, castos e sem mácula como o céu…” que, além disso, entende os seus problemas, mitiga a sua dor (ver acima as metáforas “O amor é dor. O amor cura”). A mulher amada será a esposa e a mãe com qualidades que já foram de sua mãe: “a mãe de família virtuosa, a esposa devotada e sem mácula”, sem deixar de continuar sendo o seu anjo, sem deixar de atraí-lo como sua confidente, enfermeira solícita e noiva formosa  de sua alma. (ver acima as metáforas “O amor é felicidade. O amor é abençoado pela família).