Categoria: Provérbios

Intertextualidade – Teoria

Intertextualidade: teoria

Ana Lúcia Tinoco Cabral

Nílvia Pantaleoni

         Os dicionários definem intertextualidade como sendo a superposição de um texto a outro; a influência de um texto sobre outro que o toma como modelo ou ponto de partida, e que gera a atualização do texto citado. Verificamos dessa forma que o conceito de intertextualidade, como o próprio nome indica, diz respeito à relação que se estabelece entre textos. Na verdade, todo texto é absorção e transformação de uma multiplicidade de outros textos, o que vale dizer que não existe um texto que seja totalmente original.

Um dos exemplos mais conhecidos de intertextualidade é a que se estabelece entre dois textos: o texto-matriz e o texto-derivado, que constitui uma paráfrase do primeiro. A paráfrase define-se como o desenvolvimento do texto de um livro ou de um documento, conservando-se as idéias originais, ou ainda, o modo diverso de expressar frase ou texto, sem que se altere o significado da primeira versão. Para Samir Meserani (O Intertexto Escolar, 1995), a paráfrase sempre remete a uma obra que lhe é anterior para reafirmá-la, esclarecê-la. A reafirmação parafrástica implica concordância que, muitas vezes, a aproxima da reprodução. A paráfrase aparece com freqüência em textos literários, científicos, religiosos, e da comunicação comum. É um recurso empregado pelos falantes  nas mais variadas situações de comunicação.

Meserani divide a paráfrase em dois tipos de discurso: a paráfrase reprodutiva e a criativa:

“A paráfrase reprodutiva é que a que traduz em outras palavras um outro texto, de modo quase literal.. Dentro de limites bastante estreitos, ela serve para reiterar, insistir, fixar, explicar, precisar, expandir ou sintetizar uma mensagem – no todo ou parcialmente.”

“A paráfrase criativa é a que ultrapassa os limites da simples reafirmação ou resumo do texto original, da simples tradução literal. Neste tipo de paráfrase, o texto se desdobra e se expande em novos significados. Ainda que não discorde do texto de origem, dele se distancia, usando-o como patamar ou pretexto.”

Exemplo de paráfrase criativa

Texto-matriz

Texto original: Gonçalves Dias

 

Minha Terra tem palmeiras

Onde canta o sabiá.

As aves que aqui gorjeiam

Não gorjeiam como lá.

Texto-derivado

Paráfrase: Carlos Drummond De Andrade

Meus olhos brasileiros se fecham saudosos

Minha boca procura a “Canção do Exílio”.

Como era mesmo a “Canção do Exílio”?

Eu tão esquecido de minha Terra…

Ai terra que tem palmeiras

onde canta o sabiá!

Dentre as formas de se elaborar uma paráfrase, destacamos uma técnica que é muito utilizada: a paráfrase estrutural, que consiste em criar um texto a partir da estrutura de outro. Observe alguns exemplos de paráfrase estrutural:

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. (Euclides da Cunha)

O web designer é antes de tudo um criador.

A língua é um conjunto de sinais que exprimem idéias, sistema de ações e meio pelo qual uma sociedade concebe e expressa o mundo que a cerca. (Celso Cunha)

O hipertexto é um conjunto de textos que ……….

Outra forma de intertextualidade, ou seja, de retomada de textos já produzidos, é a paródia, definida pelo dicionário como sendo uma imitação cômica de uma composição literária. É uma característica que se faz cada vez mais presente nos textos atuais. O estilo de muitos jornalistas e publicitários, além de parafrástico, é também entremeado de paródias.

Para se entender uma paródia, é necessário o conhecimento do texto ou textos originais que tornaram possível a imitação. Nesse sentido, podemos afirmar que não pode existir uma paródia que não dialogue com o texto-matriz, ou seja, sempre existe entre este e a paródia o que os estudiosos da linguagem denominam intertextualidade.

Exemplo de paródia

 

Texto-matriz: O lobo e o cordeiro

Vendo um lobo que certo cordeirinho matava a sede num regato, imaginou um pretexto qualquer para devorá-lo. E embora se achasse mais acima, acusou-o de sujar a água que bebia. O cordeiro explicou-lhe que bebia apenas com a ponta dos beiços e, além disso, estando mais abaixo, nunca poderia turvar-lhe o líquido. O lobo, exposto ao ridículo, insistiu:

— No ano passado, ofendeste meu pai.

—   No ano passado, eu não tinha nascido, replicou o cordeiro.

O lobo então:

—   Defendeste-te muito bem, mas nem por isso deixarei de comer-te!

 De que vale a defesa perante quem quer fazer o mal?

Esopo, Enciclopédia Mundial de fabulas. Vol III.

Paródia

Texto derivado:  O lobo e o cordeiroEstava o cordeiro bebendo água, Quando viu refletida, no rio, a sombra do lobo. Estremeceu, ao mesmo tempo, que ouvia a voz cavernosa: “Vais pagar com a vida o teu miserável crime”. “Que crime?” — perguntou o cordeirinho tentando ganhar tempo, pois já sabia que com lobo não adianta argumentar. “O crime de sujar a água que eu bebo.” “Mas como posso sujara a água que bebes se sou lavado diariamente pelas máquinas automáticas da fazenda?” — Indagou o cordeirinho. “Por mais limpo que esteja um cordeiro é sempre sujo para um lobo.” “E vice-versa”. — pensou o cordeirinho, mas disse apenas: “Como posso sujar a sua água se estou abaixo da corrente?” “Pois se não foi você foi seu pai, foi sua mãe ou qualquer outro ancestral e eu vou comê-lo de qualquer maneira, pois como rezam os livros de lobologia, eu só me alimento de carne de cordeiro” — finalizou o lobo preparando-se para devorar o cordeirinho. “Ein moment! Ein moment” — gritou o cordeirinho traçando seu alemão kantiano. “Dou-lhe toda razão, mas faço-lhe uma proposta: se me deixar livre, atrairei para cá todo o rebanho”. Chega de conversa — disse o lobo — vou comê-lo logo, e está acabado”. “Espera aí” — falou o cordeiro — isso não é ético. Eu tenho, pelo menos, direito a três perguntas.” “Está bem” — cedeu o lobo irritado com a lembrança do código milenar da jungle. — Qual é o animal mais estúpido do mundo?” “O homem casado” — respondeu prontamente o cordeiro. “Muito bem, muito bem!” — disse o lobo, logo refreando, envergonhado, o súbito entusiasmo. “Outra: a zebra é um animal branco de listras pretas ou preto de listras brancas?” “Um animal sem cor pintado de preto e branco para não passar por burro” — respondeu o cordeirinho. “Perfeito!”— disse o lobo engolindo em seco. “Agora, por último, diga uma frase de Bernard Shaw”. “Vai haver eleições em 66” — respondeu logo o cordeirinho mal podendo conter o riso. “Muito bem, muito certo, você escapou!” — deu-se o lobo por vencido. E já ia se preparando para devorar o cordeirinho quando apareceu  o caçador e o esquartejou.

Moral: Quando o lobo tem fome não deve se meter em filosofias

Millôr Fernandes. Fábulas Fabulosas

 

A intertextualidade não é cópia nem plágio. Antigamente, antes do advento da imprensa, existia a profissão de copista. O que se passava em sua cabeça enquanto copiava os textos encomendados, não podemos imaginar, mas é provável que a sua cópia, depois alguns exemplares feitos, se tornasse automática. Podemos compará-lo à figura do projetista de filmes que, depois de passar a fita dez vezes não presta mais atenção a ela, ficando sua mente ocupada com outros pensamentos. Hoje, mesmo não sendo, copistas temos a sensação de estarmos fadados à cópia, pois parece que tudo já foi dito, já foi escrito e temos o temor de, ao escrever, não estarmos sendo autênticos, pela nítida sensação de que alguém já disse aquilo que pretendemos expressar.

Atualmente, um dos espaços mais ricos quando se pensa em intertextualidade é, sem dúvida, a Web. O hipertexto põe em jogo uma multiplicidade de textos que se intercomunicam. Quando ativamos um hipertexto, estabelecemos automaticamente uma relação entre um texto-matriz, aquele que contém o link que despertou em nós o interesse pela ampliação de informação e um texto-derivado, aquele a que o link conduz. Entretanto, não devemos confundir esse tipo de intertextualidade com a paráfrase acima mencionada. No hipertexto, os textos remetem-se uns aos outros, ou seja, intertextualizam-se pelo tema.

Quando se pensa em intertextualidade e internet, é preciso considerar também a questão do plágio: o plagiador é o indivíduo que assina como próprio o trabalho de outrem, o que naturalmente se constitui num crime. A Web, por fornecer uma infinidade de textos a todos os navegadores indiferentemente, tornou-se fonte de muitos plágios. O que ocorre, na verdade, é que não conseguimos ser sempre originais. É aqui que entra a questão da intertextualidade, quer dizer, o que existe, na realidade, é que não podemos fugir de todo conhecimento de textos que fomos acumulando durante a vida. Quando nos dispomos a escrever sobre determinado assunto, tudo o que já lemos sobre ele, automaticamente, é ativado por nossa memória, como se ela funcionasse como um grande hipertexto, ficando em sinal de alerta, e acabamos por dialogar com todos esses textos ao escrevermos o nosso.

 

Intertextualidade – Atividades

Intertextualidade: atividades

Ana Lúcia Tinoco Cabral

Nílvia Pantaleoni

O dicionário registra, para o verbete provérbio, o seguinte:

  1. Máxima breve e popular; adágio, anexim, ditado, refrão, sentença moral.
  2. Pequena comédia que tem por entrecho o desenvolvimento de um provérbio.

Provérbio é, portanto, um dito popular que contém uma mensagem que anuncia algo sobre a vida, geralmente de maneira metafórica e, algumas vezes, até irônica.

Os japoneses divulgam o seguinte provérbio: “Água à distância não apaga incêndio.” Sabendo-se que incêndio simboliza devastação, acidente muitas vezes fatal, e a água é o antídoto do fogo, uma forma de interpretar a metáfora japonesa é: enfrente seus problemas de perto.

Atividade 1: Traduza, por meio de paráfrases, o sentido contido em cada um dos seguintes provérbios:

  1. Cada macaco no seu galho.
  2. Mais vale um pássaro na mão do que dois voando.
  3. Nem tudo o que reluz é ouro.
  4. Em casa de ferreiro o espeto é de pau.
  5. Em terra de cego, quem tem um olho é rei.
  6. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura.

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Atividade 2: Pelo fato de os provérbios serem máximas populares com as quais as pessoas muitas vezes, não concordam, alguns escritores gostam de ironizar, de brincar com este tema.

Observe o pequeno conto de Voltaire de Souza, em que o autor brinca com o conceito de provérbio, criando uma máxima pessoal. Em seguida, escolha um provérbio e crie, no mesmo estilo do conto, sua própria história.

VIDA BANDIDA

Licor

Voltaire de Souza

O dia dos namorados se aproxima. Mas a vida de uma jovem executiva é agitada. Corina trabalhava numa multinacional. “Não tenho tempo nem para o supermercado.” Namorava um rapaz chamado Júlio. “O que é que eu compro para ele? Ele tem tudo… não gosta de nada.” Corina passeava entre as gôndolas. Produtos finos sempre agradam ao paladar exigente. “Será que o Júlio vai gostar deste licor de anis?” A dúvida não durou muito. Entrou no supermercado o assaltante Canhoto. “Levo a garrafa. E a tua grana.” Corina deparou no porte atlético do delinqüente. Paixão imediata e correspondida. Corina não mais se preocupa em dar presentes. “Quando ele gosta, ele leva.”

O verdadeiro amor não tem data e dispensa lembrancinhas.

Folha de São Paulo. 06/06/2000.

PROVÉRBIOS FRANCESES E PORTUGUESES: LAÇOS CULTURAIS DE LONGA DATA

Provérbios Franceses e Portugueses: laços culturais de longa data

 (Palestra proferida na PUC-SP em 2009)

INTRODUÇÃO

Agradeço a oportunidade oferecida pelas minhas amigas, as professoras Mára e Jelssa, para, de alguma forma, contribuir com vocês que encontraram um jeito especial de passar os sábados. Até fevereiro deste ano, éramos colegas da Comfil, da Puc. Deixamos de ser colegas de instituição, o que não as impediu de me fazerem o convite prontamente aceito. É, pois, um genuíno prazer compartilhar os primeiros resultados de uma pesquisa ainda incipiente sobre provérbios.

A ampliação do universo cultural que se obtém em cursos como estes, além dos conhecimentos específicos – é claro – é um bem que tende sempre a crescer. A curiosidade intelectual, para mim, é uma competência ou habilidade (ou ambas, já que estão intimamente ligadas) que nos impulsionam vida afora a aprender sempre mais a respeito do que está dentro de nós, do que nos rodeia e, em círculos cada vez maiores, nos impulsionam a alargar fronteiras que extrapolam os limites de nosso mundo. No entanto, muitas vezes ignoramos o que faz parte do nosso cotidiano. Sirvam de exemplo, as coisas simples que se revelam pequenas jóias que usamos sem perceber. Pedras preciosas que foram lapidadas durante muitas gerações, durante muitos séculos e que nos pertencem por direito de herança. Apesar de seu emprego diário, não atentamos para seu valor que se renova a cada uso.  Falo dos provérbios. Gosto de colecioná-los, gosto de usá-los, gosto de ouvi-los. Somado a isso, o respeito e a admiração que sempre nutri pela língua francesa e, consequentemente, pela sua cultura, acho perfeitamente natural tratar dos provérbios franceses e portugueses que considero – mudando a metáfora – fitas coloridas que atestam laços culturais de longa data entre as duas línguas e as duas culturas.

A coincidência das comemorações do ano da França no Brasil autoriza minha pretensão e viabiliza minha fala, em português, evidentemente. É justo, pois, que eu queira prestar homenagens ao camponês francês e ao seu vizinho, o camponês português. De antemão, peço desculpas pelos deslizes de pronúncia ao apresentar exemplos de provérbios franceses,  mas, acredito que não esteja aqui em jogo minha proficiência na língua – pois não a tenho – mas minha vontade de compartilhar, como já disse, no início, os resultados parciais de minha pesquisa.

Procurando seguir o espírito cartesiano, minha fala divide-se em três partes e procurarei me limitar a elas:

Primeira parte: conceitos retóricos que correspondem à perspectiva teórica que adoto na pesquisa;

Segunda parte: apresentação do corpus;

Terceira parte: aplicação dos conceitos a exemplos de provérbios.

PRIMEIRA PARTE: conceitos retóricos que correspondem à perspectiva teórica

Apresento brevemente, nesta parte, os conceitos básicos da retórica aristotélica, retomados, a partir da segunda metade do século XX, por estudiosos da linguagem, voltados para a análise do discurso. Uma das vertentes – a que me interessa aqui – é a que trata da atualização e da revalorização da retórica antiga e que pode ser denominada, de acordo com os autores Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, de nova retórica.

De acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca, daqui em diante, para facilitar “Perelman”, na obra TRATADO DA ARGUMENTAÇÃO: A NOVA RETÓRICA, um dos pontos de partida da argumentação – ao lado dos fatos, das verdades e das presunções – são os os valores, as hierarquias e os lugares do preferível.  Todos os elementos citados: fatos, verdades e presunções, além dos valores, das hierarquias e dos lugares do preferível são objetos de acordo para se estabelecer a adesão do auditório às teses que são oferecidas a seu assentimento.

Existem vários tipos de auditório. O nosso, por exemplo, é um auditório particular, de especialistas. Por isso, meu discurso, ou seja, minha fala apresenta características distintas da fala dirigida a um auditório íntimo ou da fala dirigida ao auditório universal.

Para, Aristóteles, a arte retórica trata do estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses apresentadas ao seu assentimento. Séculos mais tarde, é ainda assim que a arte retórica é considerada.

Retórica é a arte de bem falar, com objetivos múltiplos: persuadir, convencer, criar o assentimento; agradar, seduzir, justificar o seu ponto de vista a qualquer preço; sugerir o implícito pelo explícito; fazer passar como verdadeiro o que é apenas verossímil.

Três elementos distintos devem ser considerados quando se concebe a fala do orador como forma de ação: o oradoro ouvinte e o próprio discurso. O discurso é a ação em direção ao ouvinte com a intenção de persuadi-lo e isso só se obtém à medida que o discurso (logos) tem um valor demonstrativo, revela o caráter do orador (ethos) e torna o ouvinte (pathos) disponível à persuasão.

Os objetos de acordo: hierarquização dos valores e os lugares

Nem só de oratória vive a retórica. Ela trata da própria argumentatividade que caracteriza grande parte das interações verbais. Numa argumentação, no jogo que aí se instaura de “argumentar e contra-argumentar”,  sustentamo-nos em valores que desejamos submeter ao nosso interlocutor que, por sua vez, também se sustenta em seus próprios valores. Quando os valores são compartilhados é fácil se chegar a um acordo.

Existem valores universais e valores particulares. Os valores universais são utilizáveis perante todos os auditórios: os valores particulares sempre podem ser vinculados aos valores universais e podem servir para especificá-los. O auditório real poderá considerar-se tanto mais próximo de um auditório universal quanto mais o valor particular parecer apagar-se ante o valor universal por ele determinado. É, portanto, na medida em que são vagos que esses valores se apresentam como universais e pretendem um estatuto semelhante ao dos fatos.

A argumentação se sustenta não só nos valores, abstratos e concretos, mas também em sua hierarquização. Um exemplo de hierarquia é a superioridade dos homens sobre os animais; a superioridade dos seres vivos, por sua própria natureza, sobre as coisas.

As hierarquias admitidas se apresentam praticamente sob dois aspectos característicos: ao lado das hierarquias concretas, como a que expressa a superioridade dos homens sobre os animais, há hierarquias abstratas, como a que expressa a superioridade do justo sobre o útil.

Nesse sentido, as hierarquias de valores são mais importantes do ponto de vista da estrutura de uma argumentação do que os próprios valores. Na verdade, a maior parte dos valores são comuns a um grande número de auditórios. O que caracteriza cada auditório são menos os valores que admite do que o modo como os hierarquiza. Tomemos como exemplo um auditório que valoriza a riqueza, a beleza e o poder, três valores, portanto. Para a tese para a qual o orador procura o assentimento do auditório – o mercado de ações é vantajoso, já existe um objeto de acordo, pois o orador também comunga desses valores (riqueza, beleza e poder). Existe, então, o que chamamos de adesão inicial. Supondo que eu, oradora, seja a vendedora de ações –  para defender minha tese vou hierarquizar a riqueza, argumentando que “primeiro é preciso ser rico (que se consegue  aplicando o  dinheiro em ações)” e que os outros valores podem ser adquiridos em consequência do valor hierarquizado. E por aí vai. O que importa, neste caso, é que o orador quer que seu auditório hierarquize o dinheiro, então toda sua argumentação será baseada nisso.

Isso significa que os valores, mesmo se admitidos por muitos auditórios particulares, o são com maior ou menor força. A intensidade da adesão a um valor, em comparação com a intensidade com a qual se adere a outro, determina entre esses valores uma hierarquia que se deve levar em conta.

Quando se trata de fundamentar valores ou hierarquias, ou de reforçar a intensidade da adesão que eles suscitam, podemos relacioná-los com outros valores ou com outras hierarquias, para consolidá-los, mas pode-se também recorrer a premissas de ordem muito geral: os lugares.

O que é um lugar retórico?

Para os antigos, os lugares designam rubricas nas quais se podem classificar os argumentos. Tratava-se de agrupar o material necessário a fim de encontrá-lo com mais facilidade, em caso de precisão; daí a definição dos lugares como depósitos de argumentos. Aristóteles distinguia os lugares-comuns, que podem servir indiferentemente em qualquer ciência e não dependem de nenhuma, e os lugares especificos, que são próprios, quer de uma ciência particular, quer de um gênero oratório bem definido. Os lugares-comuns, portanto, se caracterizavam, primitivamente, por sua imensa generalidade, que os tornava utilizáveis em todas as circunstâncias.

Perelman conclui que os lugares-comuns de nossos dias se caracterizam por uma banalidade que não exclui de modo algum a especificidade. Tais lugares-comuns não são, a bem dizer, senão uma aplicação dos lugares-comuns, no sentido aristotélico, a temas particulares. Ele continua: mas, como essa aplicação é feita a um tema tratado com frequência, que se desenvolve numa certa ordem, com conexões previstas entre lugares, agora só se pensa em sua banalidade, ignorando-lhes o valor argumentativo. Isso a tal ponto, que se tende a esquecer que os lugares formam um arsenal indispensável, do qual, de um modo ou de outro, quem quer persuadir outrem deverá lançar mão.

Os lugares mais comuns, que Perelman denomina de lugares do preferível (justamente, por justificarem uma determinada hierarquização de valores) São os da quantidade, da qualidade, da ordem, do existente, da essência, da pessoa.

1. Os lugares da quantidade afirmam que alguma coisa é melhor do que outra por razões quantitativas.

2. Os lugares da qualidade aparecem na argumentação quando se contesta a virtude do número.

3. Os lugares da ordem afirmam a superioridade do anterior sobre o posterior, ora da causa, dos princípios, ora do fim ou do objetivo.

4. Os lugares do existente afirmam a superioridade do que existe, do que é atual, do que é real, sobre o possível, o eventual ou o impossível.

5. O lugar da essência refere-se ao fato de conceder um valor superior aos indivíduos enquanto representantes bem caracterizados dessa essência.  A moral do super-homem extrai do lugar da essência todo o seu atrativo e todo o seu prestígio.

6. O lugar da pessoa vincula-se à sua dignidade, ao seu mérito, à sua autonomia.

São estes, basicamente, os conceitos que emprego para o estudo inicial dos provérbios.

Vou confessar uma coisa a vocês: houve um tempo em que eu não gostava de estudar teorias, pois me considerava muito observadora e muito prática. Ainda bem que houve um momento em que “caiu a ficha” quando percebi que o simples empirismo não é suficiente para se fazer pesquisa. Com o passar do tempo, fui sentindo prazer pelas teorias e um prazer maior ainda ao perceber que as categorias que elas geram ou que elas possibilitam são essenciais para o entendimento dos fenômenos que estudamos.

Mesmo no caso dos provérbios!

SEGUNDA PARTE: apresentação do corpus

corpus é constituído por provérbios franceses e seus equivalentes portugueses. Foram retirados do Dicionário de Provérbios (francês/português/inglês) da Editora Unesp, organizado por Roberto Cortes de Lacerda, Helena da Rosa Cortes de Lacerda e Estela dos Santos Abreu. A edição de meu exemplar é de 2004.  Saliento que os provérbios franceses foram definidos por Didier Lamaison.

Na advertência da segunda edição, revista e ampliada, que é a que tenho em mãos, são quantificados mais de 3.800 provérbios franceses, com mais de 6.000 correspondentes em português e quase 4.500 provérbios ingleses.

Na verdade, o corpus selecionado para a pequisa nada mais é que uma pequena amostra do dicionário, pois analiso, aproximadamente setenta provérbios franceses e seus similares (outros setenta portugueses).

Diante de tamanha riqueza, meu primeiro problema foi definir o recorte que deveria ser feito. Optei por analisar os provérbios que apresentassem animais. Ou seja, optei pela fauna. Não distingui animais domésticos de animais selvagens, bastava ser “animal” para entrar na minha lista. Parti dos provérbios franceses para chegar aos portugueses. A seguir, fiz mais uma redução, desta vez, tendo como critério o espaço geográfico. Eliminei, então, muitos provérbios, extremamente interessantes por sinal, por serem provenientes da ilha da Martinica, do mar do Caribe, de colonização francesa. A preferência foi pelos provérbios europeus, tanto os de língua francesa quanto os de língua portuguesa. Cheguei, então, aos aproximadamente cento e quarenta provérbios, cuja lista passo a vocês para que possam acompanhar melhor meus comentários e para que possam também participar mais ativamente. Como já disse, trata-se de uma pesquisa em andamento. Por isso, repito, fico feliz pela oportunidade de trocar idéias com vocês.

Da nossa lista constam animais alados, animais terrestres e animais aquáticos. Cada um objeto de observação profunda por parte da população campesina que criou a maioria dos provérbios.

É preciso salientar que muitos remontam aos gregos e aos romanos, foram retomados na Idade Média e adentraram a Época Moderna sem perderem seu frescor e sua argúcia. São eles os famosos lugares retóricos usados na argumentação das situações comunicativas cotidianas até hoje. São os lugares do preferível de que fala Perelman e que se sustentam na hierarquização de valores.

Antes da análise propriamente dita, destaco alguns provérbios que especialmente me chamaram a atenção.

A) Os mais belos para mim são os que apresentam como referentes aves. Destaco três:

1. Le cygne plus il vieillit, plus il embellit. (sXVII). quem diria: a valorização da velhice!

2. aigle seul a le droit de fixer le soleil.

3. Même quand l´oiseau marche on sent qu´il a des ailes. (sXVIII)

Em português, o único que tem correspondência direta é o da águia: “Apenas a águia pode olhar o sol.” Existe um aproximado sobre o pássaro que anda, em português, mas sem a beleza da versão francesa: “Passarinho cai de voar, mas bate suas asinhas no chão.”

O do cisne, tão poético em sua primeira parte, continua bem mais prosaico, bem mais campônio: “Le cygne plus il vieillit, plus il embellit; le chien, auquel vieillissant, le membre grossit; le cheval et le cerf, que plus vieillisent, plus le font.

B) Os mais curiosos são os meteorológicos (que tratam da relação dos animais com o tempo). Destaco dois:

1. Les abeilles, en juillet, ne valent grain de millet./ Enxame de março, apanha-o no regaço; o de abril, não o deixes ir; o de maio, deixa-o.

Este por desconhecer completamente que a qualidade das abelhas estava relacionada com a temperatura,  e que com a aproximação do verão, elas perdiam seu valor.

2. Si la loutre voit son ombre le jour de la Chandeleur, elle rentre dans son trou pour quarante jours.

(No dia da Chandeleur celebra-se a Apresentação de Jesus no Templo.)

O da lontra, pela descoberta que este provérbio sobre o tempo tem seu correpondente na América do Norte. E quem vai negar que cinema americano também é cultura? Lembram-se do filme estrelado pelo Billy Murray, no começo dos anos 90? Isso mesmo o Feitiço do Tempo.

(A lontra é da família da marmota. O Dia da marmota é uma festa tradicional nos Estados Unidos da América e no Canadá, que se celebra no dia 2 de Fevereiro. Segundo tradição, as pessoas devem observar uma toca de Marmota monax, se o animal sair da toca por estar nublado, isso significa que o inverno terminará mais cedo, porém, se pelo contrário, o sol estiver brilhando e o animal se assustar com a sua sombra e voltar para a toca, então o inverno durará mais seis semanas.)

C) Os mais antigos. Destaco também dois:

  1. Noire géline pond oeuf blanc. Trata-se de um provérbio medieval em que encontramos a forma arcaica de pouleGéline tem origem em gallina (latim) que deu nossa “galinha”.
  2. La mouche va si souvent au lait qu´elle y demeure.  Que pode ser relacionada à fábula grega de Esopo que vale a pena contar:

      Uma mosca caiu numa panela de carne. Afogada no molho e já quase morrendo, ela disse para si mesma: “se já comi, já bebi e já tomei um banho, que me importa morrer?”

Suportamos a morte com mais facilidade quando a ela não associamos pensamentos tristes.

D) O emprego inusitado dos provérbios. Destaco o que me chamou a atenção:

Tout est bon dans le cochon. Usado por Umberto Eco na obra tão consultada “Como fazer uma tese”. Ele faz uma analogia entre uma tese e o porco. Uma tese é como o porco, dela tudo se aproveita.

TERCEIRA PARTE: aplicação dos conceitos a exemplos de provérbios.

Recordando a teoria, os provérbios são os lugares do preferível empregados em diversos discursos (falas) em situações comunicativas cotidianas. São tipos de argumentos bseados na estrutura do real, ou seja, os provérbios são criações coletivas provenientes da observação da realidade. Como nosso corpus se restringe ao comportamento de animais, eliminamos o lugar da pessoa. Ficamos, portanto com cinco lugares: da quantidade, da qualidade, da ordem, do existente e da essência.

Quantidade: alguma coisa é melhor do que outra por razões quantitat

Qualidade: quando se contesta a virtude do número

Ordem: a superioridade do anterior sobre o posterior, ora da causa, dos princípios, ora do fim ou do objetivo

Existente; a superioridade do que existe, do que é atual, do que é real, sobre o possível, o eventual ou o impossível

Essência; valor superior aos indivíduos enquanto representantes bem caracterizados dessa essência

Na verdade, os lugares de nada serviriam se não estivessem a serviço da hierarquização de valores.

Os valores encontrados no corpus geralmente se apresentam em oposição ao seu oposto. Esta oposição é clara (quando os dois competem no provérbio) ou fica subentendida (quando apenas um dos valores aparece).

Exemplo de provérbio com valores antitéticos figurativizados:

(INQUIETAÇÃO/AVIDEZ/COBIÇA X TRANQUILIDADE/DESAMBIÇÃO/DESAPEGO)

Mais vale um pássaro na mão do que dois voando.

Exemplo de provérbio com um valor figurativizado:

(EXPERIÊNCIA/CONHECIMENTO)

Galinha velha é que dá bom caldo.

EXEMPLOS DE VALORES

(CORAGEM/OUSADIA)

Apenas a águia pode olhar o sol.

(INEXPERIÊNCIA/INGENUIDADE)

Ovelha que berra, bocado que perde.

(IMPREVIDÊNCIA)

Infeliz do rato que só conhece um buraco.

OS LUGARES PREFERIDOS PARA A HIERARQUIZAÇÃO DOS VALORES

1. LUGAR DA QUANTIDADE

  • Do porco tudo se aproveita.
  • Mais vale um pássaro na mão do que dois voando.
  • Dois pardais na mesma espiga nunca fazem liga.

2. LUGAR DA ESSÊNCIA

  • Aos peixes não se ensina a nadar.
  • Galinha tem de toda cor, mas todo ovo é branco.

3. LUGAR DO EXISTENTE

  • A cavalo dado não se olham os dentes.
  • À falta de capão, cebola e pão.

4. LUGAR DA ORDEM

  • A cada bacorinho vem o seu São Martinho.
  • Burro e carroceiro nunca estão de acordo.
  • Depois de peixe, mal é o leite.
  • Galinha velha é que dá bom caldo.
  • Morto o bicho, acaba a peçonha.

5. LUGAR DA QUALIDADE

  • A burra velha, cilha nova.
  • Cavalo formoso de potro sarnoso.

Considerações provisórias

A base de criação de todos os provérbios é empírica. O grande lugar o macrolugar é o lugar do existente: a sábia observação do que é empírico.

Todos os provérbios, frutos da observação de gerações e gerações de camponeses, constituem-se em lugares onde se hierarquizam diferentes valores que sustentam suas crenças.  Podemos concluir que a partir do lugar do existente (da observação do comportamento animal e do comportamento do homem em relação aos animais) foram criados todos os provérbios.

Consideramos também que a visão de mundo dessas gerações tão ligadas à natureza tira de sua observação um outro lugar: o lugar da ordem. Nesse sentido, todos os provérbios meteorológicos enquandram-se na ordem. Da mesma forma, quase todos os provérbios pesquisados podem se enquadrar na ordem. É como se a ordem presente na natureza fosse transportada para a ordem que se precisa estabelecer na vida dos homens. Sábia lição aprendida pelos simples. O valor da aceitação, da simplicidade, da naturalidade é preferível ao valor da ambição, do artificialismo e da sofisticação.

Sábias lições!