Categoria: resenha crítica

Comentários sobre Reflexões sobre a Linguagem, de Noam Chomsky (SEGUNDA PARTE)

Chomsky versus Quine

Na segunda parte da obra Reflexões sobre a Linguagem[1], no capítulo 4, Problemas e Mistérios no Estudo da Linguagem Humana, notamos que o próprio título já é argumentativo na medida em que afirma que existem problemas e mistérios quando se estuda o fenômeno da linguagem. Problemas podem ser solucionados, enquanto que, seres humanos que somos, devemos contemplar os mistérios, impotentes em resolvê-los, pelo menos, no estágio em que se encontra a lingüística.

Chomsky cria a figura de um cientista C, um “alienígena” que vem estudar os seres humanos como organismos no mundo natural. Ele é isento de nossos sistemas de valores, de nossas convicções e, de modo totalmente objetivo, empregando o método hipotético-dedutivo, vai poder checar as propostas chomskianas a respeito da linguagem. Parece-nos que C é o alter-ego do autor que, dessa forma, pode se apresentar com os atributos de objetividade e de imparcialidade para demonstrar a teoria que ele próprio havia formulado. C não aparece pela primeira vez nesta obra. Quine que será um dos críticos do trabalho de Chomsky já se refere a ele em um artigo de 1969, Reply to Chomsky, que integra a obra de Davidson e Hintikka, Words and Objections: Essays on the Work of W. V. Quine. Na realidade, Quine é considerado o filósofo norte-americano mais influente da segunda metade do século XX, continuador do pensamento de Russel e Whitehead, preocupando-se com investigações no campo da semântica e em suas relações com a lógica formal. Ele teve sua reputação consolidada com a obra Word and Object, de 1960, no entanto, tem recebido críticas pelo behaviorismo explícito que adotava naquele momento, apesar de em 1969, tentar se afastar do modelo skinneriano.

Chomsky parece “se ofender” com Quine que considera “loucura” alguns postulados de nosso autor que adotaria uma “doutrina dogmática“, desprovida de “critérios’’. Chomsky não se contém e, frequentemente durante sua resposta a Quine, o provoca. Assim, as suas restrições quanto ao método e universais linguísticos e a sua acusação genérica de loucura são completamente desprovidas de força. Mais adiante, ele continua: “Prosseguindo um pouco na discussão metodológica de Quine, consideremos novamente Quine (1972). Nesse artigo, Quine levanta objeções àquilo que classifica ‘atitude niilista em relação às disposições’. Isto parece-lhe tão estranho que acrescenta: ‘Gostaria de pensar que algo me escapa’. É de fato verdade! Basta lermos as minhas afirmações por ele citadas para compreendermos o que lhe escapa. A sua crença de que eu ‘rejeitei disposições’ fundamenta-se na minha crítica da sua definição de linguagem como um ‘complexo de disposições existentes destinadas ao comportamento verbal, no qual os falantes de uma mesma língua se assemelham necessariamente uns aos outros’.

A respeito da aquisição da linguagem, Chomsky critica a posição de Quine que afirma que a criança aprende a maior parte da língua ao ouvir os adultos e ao tentar imitá-los, postura evidentemente eivada da teoria E – R comportamentalista, e que deixa pouca abertura à produtividade criativa da linguagem, proposta por Chomsky, apesar de não poder comprová-la: Aquilo que designei algures por ‘aspecto criador da utilização da linguagem’ continua a ser para nós um mistério tal como era para os cartesianos que o discutiram, em parte, no contexto do problema dos ‘outros espíritos’.

Além disso, também critica reiteradamente a definição de língua de Quine, como um simples complexo de disposições para responder a questões, por exemplo, do tipo “dúvida-concordância” que seria um processo, um empreendimento contínuo de aprendizagem manifesta. Existem, é verdade,  disposições inatas para Chomsky, são as estruturas inatas para a aprendizagem; só que ele não pode considerar que estas disposições apresentem em seu desenvolvimento uma organização tão simplista e limitadora. Se isso fosse verdade, declara Chomsky, se uma língua é um complexo de disposições para responder numa série normal de circunstâncias, então não seria finita (a não ser que incluísse todas as línguas) mas também extremamente pequena. […] note-se que nas minhas observações não existe qualquer ‘rejeição das disposições’ mas sim de afirmações falsas ou vazias sobre disposições como, por exemplo, a afirmação de que uma língua é um complexo de disposições existentes destinadas ao comportamento verbal.

Não são apenas os trabalhos de Quine que merecem a crítica de Chomsky, todos os que, de uma forma ou de outra, se opõem à sua teoria vão sendo rechaçados por sua argumentação. E o que é interessante é que esta parte de sua obra participa do grande embate de ideias que tem caracterizado o último quartel do século XX. Finalizamos com o tributo que Chomsky presta a Descartes, considerado precursor, guardadas as devidas proporções, de suas investigações científicas: Também Descartes não poderia dizer se era um ‘cientista’ ou um ‘filósofo’ no sentido em que muitos contemporâneos utilizaram esses termos, restringindo a filosofia a um gênero de análise conceitual. Ele era, sem dúvida, ‘cientista’ e ‘filósofo’. O seu estudo das ideias inatas e da mente estão agora em causa. Como cientista pensava que podia explicar muitos aspectos do comportamento humano, e tudo o mais, em termos de príncípios mecânicos. Sentiu-se, porém, levado a postular uma segunda substância cuja essência explicaria algumas observações sobre os seres humanos (ele e outros). É justamente este afã, esta necessidade de explicar todos os fenômenos da natureza, aí incluindo-se os problemas que envolvem as teorias da aprendizagem, especificamente a aprendizagem da linguagem e sua ligação com a mente, com o espírito que tornam fundamentais os trabalhos de filósofos-cientistas como Chomsky.

 

 

[1] Chomsky, N. Reflexões sobre a linguagem. Lisboa: edições 70, 1975.

Comentários sobre Reflexões sobre a Linguagem, de Noam Chomsky (PRIMEIRA PARTE)

A faculdade de linguagem é um componente essencial da estrutura mental inata.

Este mote, Chomsky vai glosar nas reflexões que faz a respeito da linguagem e está presente nas duas partes em que se compõe a obra Reflexões sobre a Linguagem[1]. A primeira, uma transcrição elaborada pelo autor de “As Conferências de Whidden”, realizadas em 1975, é dividida em três capítulos: 1. Sobre a Capacidade Cognitiva; 2. O Objetivo da Investigação; e 3. Algumas Características Gerais da Linguagem. A segunda parte, de maior fôlego, pois nela Chomsky procura rebater as muitas críticas às suas investigações, apresenta o capítulo 4. Problemas e Mistérios no Estudo da Linguagem Humana, que, na realidade, é uma versão revista por Chomsky de um ensaio encomendado no ano anterior, 1974, a ser publicado, juntamente com os de outros especialistas da linguagem, em homenagem a Yehoshua Bar-Hillel, lógico israelita de origem polonesa, autor de Aspectos da Linguagem, 1970.

Mais de um quarto de século depois, ainda são pertinentes estas reflexões que, antes de mais nada, são corajosas por já se inserirem no contexto dos estudos pragmáticos da linguagem, subsidiados pelos filósofos da Escola de Oxford, para quem a função comunicativa da linguagem é a preponderante e que são criticados por Chomsky, que previa, é verdade, a validade do estudo do desempenho linguístico – performance – num contexto que já tivesse dado conta da competência – competence – conforme ele reafirma, no mesmo ano (1975), no famoso encontro com Piaget, quando foram confrontadas as teses do construtivismo piagetiano e do inatismo chomskiano: Esperamos construir no futuro uma teoria explicativa global do desempenho, a qual enunciará de maneira muito precisa a interação dos diferentes sistemas, entre os quais, o conhecimento da língua (competência linguística e gramática). As observações relativas ao desempenho envolvem diretamente esse sistema de explicação e, assim, de um modo indireto, os componentes que ele postula[2].

Selecionamos para esta resenha crítica o ponto de vista de Chomsky a respeito do inatismo da linguagem e, apesar de ele estar sempre se referindo a um “locutor ideal” , valemo-nos de um informante real que, no momento desse estudo, vivencia uma das mais extraordinárias experiências humanas: apossar-se do mundo por meio da aquisição da linguagem. Também, vamos seguir a argumentação de Chomsky, na segunda parte da obra, quando ele rebate as críticas que lhe foram feitas por Quine.

O inatismo da linguagem já foi discutido inúmeras vezes e parece que existe consenso entre os linguistas a este respeito. Muitas vezes, quando Chomsky era questionado a este respeito, ele argumentava dizendo que era muito natural que os seres humanos, com o desenvolvimento nitidamente superior do cérebro em relação às outras espécies animais, tivessem a capacidade inata da linguagem, comparando-a com capacidades inatas, por exemplo, dos castores que já nasciam predeterminados para construir barragens e abrigos semi-submersos.

Chomsky parte da indagação de Bertrand Russel que retoma uma interrogação milenar: Como se explica que seres humanos, cujos contatos com o mundo são breves, pessoais e limitados sejam, no entanto, capazes de saber tanto quanto na realidade sabem?[3]. A resposta de Chomsky está no conceito de uma estrutura cognitiva abstrata, criada por uma faculdade inata do espírito, representada de modo ainda desconhecido no cérebro. Sendo o espírito uma capacidade inata de formar estas estruturas cognitivas, existindo uma estrutura cognitiva específica referente à linguagem. Ela existe em nosso cérebro e, para Chomsky, ela deve ser estudada do mesmo modo como são estudados os outros órgãos físicos. Então, é o nosso organismo que tem a capacidade de construir, de desenvolver estas estruturas cognitivas, e o nome que se dá a esta capacidade inata de nosso organismo é aprendizagem. Nesse sentido, Chomsky vai especular a respeito das Teorias da Aprendizagem, já que aprender é a capacidade que o organismo tem de construir estruturas cognitivas. Ou ainda, aprender é essencialmente um problema de preencher pormenorizadamente uma estrutura inata.

Qual é o problema fundamental de uma teoria linguística TA (H, L), onde TA = teoria de aprendizagem, H = seres humanos e L = língua? De acordo com nosso pensador, é delimitar a classe de ‘sistemas passíveis de aprendizagem’ de modo a podermos explicar a rapidez, uniformidade e riqueza da aprendizagem dentro do âmbito da capacidade cognitiva. Evidentemente a hipótese da aprendizagem instantânea de uma língua é rechaçada, contudo o espaço de tempo que vai do estágio inicial a um estágio de maturação, EC (estado cognitivo alcançado na aprendizagem de uma língua) é muito rápido.

A formulação do problema da aquisição da linguagem, Chomsky faz no início da segunda parte de suas reflexões: Que espécie de estruturas cognitivas são desenvolvidas pelos seres humanos, com base na experiência, especificamente no caso da aquisição da linguagem?. A resposta ele dá logo a seguir: Estes estados das estruturas cognitivas, no caso da linguagem, passam por alterações rápidas e extensivas durante um período inicial de vida e, alcançado um estado invariável, ‘final’, este sofre depois apenas modificações de menor relevância.

Qualquer um, desde que se aplique em observar, ainda que sem rigor científico, um bebê, do nascimento até, aproximadamente dois anos, verificará a grosso modo a veracidade da hipótese chomskiana. As conclusões a que pudemos chegar ‑ e inúmeros pesquisadores já puderam constatar com rigor ‑ observando um bebê, atualmente com um ano e nove meses, corroboram a afirmação de Chomsky de que os seres humanos são dotados de um sistema inato de organização intelectual a que poderemos chamar ‘estado inicial’ do espírito. Os seres humanos estão programados para falar, desenvolvendo-se a linguagem de forma natural e rápida, se existir um ambiente favorável para o desencadeamento das funções inatas. Este ambiente favorável, que não se atrela a classe social, ou raça, ou localização geográfica, ou ainda, cultura determinada, vai fornecer informações orais e outros estímulos à criança que constituirá sua gramática numa ordem preestabelecida e num plano predeterminado geneticamente. Pela ordem, os níveis que vão sendo desenvolvidos são os seguintes: Fonêmico, Mórfico e Sintático.

O nível fonêmico começa se manifestar pelo choro que, a partir de alguns meses, já tem uma função apelativa, além da função inicial instintiva. É o mesmo choro que, por volta de um ano, aperfeiçoa-se atingindo o estágio conhecido como “manha” e que, se não é devidamente controlado pelos adultos, se transforma nas inevitáveis “birras”. A função apelativa também vai sendo desenvolvida pelo balbucio constante de sons que vão se articulando e se fixando em alguns fonemas de produção mais simples e quase sempre duplicados. É a fase do papa, mamã, vovó, vovô, teté, nenê, tite e assim por diante. Nessa fase normalmente os adultos que convivem com o bebê, acreditam que seu papel de fornecedor de matéria prima é essencial para o desenvolvimento da linguagem. No entanto, um dia o bebê vem com uma formação sonora que ninguém havia antes lhe ensinado e esta formação não é apenas um balbucio, trata-se já de um signo na concepção de Saussure, com as duas faces já estabelecidas pela criança. Significante: /bibi/ e Significado: epiderme, pele que normalmente fica sob a roupa. O signo foi decodificado pelos adultos com o auxílio do bebê, na época com pouco mais de um ano, idade em que passa a ter mais consciência do próprio corpo. Curiosamente, o repertório de palavras inventadas, alguns dias depois, é acrescido do significante: /bibi-bobó/ com o significado de automóvel. É certo, então, que as manifestações linguísticas, que as crianças recebem do seu meio, exemplificam apenas uma parte das regras gramaticais que ela acaba dominando.

O nível mórfico tem um desenvolvimento impressionante a partir de um ano e meio, com a aquisição diária de inúmeras palavras monossílabas e dissílabas, com a solicitação da criança que passa a apontar tudo o que lhe chama a atenção, assenhorando-se do mundo que a cerca, na medida em que vai lhe dando nomes. Existe para Chomsky a “ação de denominar” que é primária e isolável, as unidades lexicais estão localizadas num ‘espaço semântico’ gerado pela ação recíproca da faculdade da linguagem e de outras faculdades do espírito. Este espaço semântico – já que aprender é essencialmente um problema de preencher pormenorizadamente uma estrutura inata – vai sendo preenchido à medida que o bebê vai interagindo com o mundo. As categorias vão se formando, por exemplo, nomes de animais realmente vistos pela criança como: o hiperônimo onomatopaico “au-au” e os hipônimos ‑ nomes decães que a criança conhece: nenê, chu, mini; os hiperônimos onomatopaicos “miau” para os gatos e “piu-piu” para os passarinhos; e “pexinho” para os peixes do aquário; os animais de brinquedo e os virtuais das páginas dos livros e da tela da televisão vão aumentando incessantemente o léxico da criança.

Nesse momento, um outro nível mais complexo passa a desenvolver-se com enorme rapidez: o nível sintático. É agora que a criança vai iniciar o domínio de uma outra classe de palavras que lhe vai dar a possibilidade de formar as primeiras frases: os verbos. Os primeiros verbos, que se apresentam na terceira pessoa do singular do presente do indicativo, têm na realidade a força ilocutória da ordem, do pedido (emprestando o termo força ilocutória ou ilocucional dos atos de fala de Austin). Eis alguns exemplos: Qué mais! Num qué! Qué! Solta! Dá!. Logo em seguida, temos o emprego das primeiras perguntas, que também têm o valor de um pedido, de uma solicitação: Cadê panino? Cadê au-au? Que é isso?  Isso – a primeira palavra dêitica que tem a função de estabelecer referência entre o mundo extralinguístico e a sua representação em língua.

É interessante observar que toda elocução, nessa idade, é acompanhada por uma extraordinária expressividade da qual participam as mãos, a cabeça, o corpo todo e, que, quando seus desejos não são atendidos, o choro e o monossílabo não, pronunciado com entonações enfáticas, são os únicos argumentos que parecem conhecer. Serão o convencimento e a persuasão por meio da língua as últimas conquistas na aquisição da linguagem? É nesse momento que os primeiros atributos passam a fazer parte do léxico da criança, expressos de forma enfática e sempre antecedidos do “que exclamativo”, delineia-se já o que será futuramente a expressão de sua função emotiva: Que lindo! Que medo! Que gostoso!. Quase que concomitantemente, as primeiras asserções, isto é, as primeiras declarações a respeito do que lhe acontece e ao seu entorno, começam a se multiplicar. Os verbos ainda continuam na terceira pessoa do singular, no entanto, um novo tempo já é empregado: o pretérito perfeito. Alguns exemplos coletados de nosso informante são: Caiu! ‑ para expressar que ele própria caiu ou que derrubou alguma coisa; Foi embora! ‑ quando a gata foge às suas investidas; Bateu! – ao levar umas palmadas por mau comportamento; Voou! – quando algum passarinho bate as asas e desaparece de sua vista.

Concluindo nossas observações a respeito da aquisição da linguagem, de acordo com os postulados de Chomsky, vale lembrar que, para ele, a criança aprende a língua materna em idade na qual não aprende outros saberes tão complexos ou menos complexos que esse. Uma criança como a que acabamos de apontar, de um ano e nove meses, está saindo das fraldas, não consegue comer sozinha, sem derrubar a maior parte do alimento no trajeto do prato à boca e, se deixada no alto de uma escada, certamente sofrerá uma queda, pois seu senso de equilíbrio ainda está em formação. Ext

 

[1] Chomsky, N. Reflexões sobre a linguagem. Lisboa: edições 70, 1975.

[2]Piattelli-Palmarini, M. (org.)Teorias da Linguagem – Teorias da Aprendizagem: o debate entre Jean Piaget e Noam Chomsky. SP: Cultrix, 1979.

[3]Russel, B. Human Knowledge: Its scopes and limits. NY: George Allen and Unwin, 1948.

Introdução ao Gênero Resenha

Introdução ao Gênero Resenha

Nílvia Pantaleoni

Vamos considerar o gênero resenha como uma técnica de escrita, pois nosso objetivo é tornar o estudante universitário proficiente nesta e em outras técnicas que subsidiam a redação de textos que constituem os diversos gêneros empregados no discurso acadêmico.

Partimos do pressuposto de que o ser humano vive inserido em cultura e participa de uma vida em sociedade, por isso tem necessidade de dominar gêneros específicos das esferas de atividade humana em que atua. O estudante universitário, por exemplo, é convocado a realizar determinadas atividades escritas que provavelmente ainda não domine como as monografias que utilizam outros gêneros em sua constituição. É o caso concreto, por exemplo, das resenhas de obras  que servem para fundamentar a pesquisa, já que a fundamentação teórica é, em grande parte, feita a partir da síntese de obras lidas e resenhadas.

Observe uma atividade que se exigia há algum tempo e, atualmente, é relegada a segundo plano: o fichamento de livros, principalmente de obras literárias.

FICHA DE LEITURA
Título e Data de Publicação:
Autor:
Editora:
Gênero Literário:
Personagens principais:
Espaço e Época da ação:
Tema da obra:
Resumo da obra:
Pontos a favor:
Pontos contra:
Outras obras semelhantes:

A resenha descritiva é semelhante à ficha de leitura . Observe o modelo de uma resenha descritiva:

RESENHA DESCRITIVA
Nome do autor (ou dos autores):
Título completo e exato da obra (ou do artigo):
Nome da Editora e, se for o caso, da coleção de que faz parte a obra:
Lugar e data da publicação:
Número de volumes e páginas:
Indicação do assunto global da obra:
Indicação do ponto de vista adotado pelo autor (perspectiva teórica):
Resumo geral que apresenta plano da obra e os pontos essenciais do texto:
Descrição sumária da estrutura da obra (sumário, índices, divisão em capítulos, assuntos dos capítulos)

Mas, afinal, o que é resenhar?

Resenhar significa fazer uma relação das propriedades de um objeto, enumerar cuidadosamente seus aspectos relevantes, descrever as circunstâncias que o envolvem. O objeto resenhado pode ser um acontecimento qualquer da realidade ou textos e obras culturais.

A resenha nunca pretende ser completa e exaustiva, já que, normalmente, são muitas as propriedades e circunstâncias que envolvem o objeto descrito. Quem resenha deve proceder seletivamente, filtrando apenas os aspectos do objeto que considera pertinentes, isto é, apenas aquilo que é funcional em vista de sua intenção.

A resenha  descritiva apresenta com precisão e fidelidade os elementos referenciais e suas inter-relações, ou seja, as ideias do(s) autor(es) sobre um determinado tema, sem nenhum julgamento ou apreciação.

As categorias que  estruturam basicamente a resenha descritiva são as seguintes:

1. Referência Bibliográfica (informações sobre o texto)

Relatórios, resenhas e resumos devem sempre conter indicações com respeito à origem do texto. Essas indicações variam segundo o tipo de texto de que se trata, devendo-se, pois, seguir as normas estabelecidas pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas).

2. Descrição

Pode-se fazer, nesta parte,  uma descrição sumária da estrutura da obra (divisão em capítulos, assuntos dos capítulos, índices etc.).

3. Resumo

Indicação sucinta do assunto global da obra (tema) e do ponto de vista adotado pelo autor (perspectiva teórica, gênero, método etc.).

Finalmente, como se constitui a  resenha crítica?

A resenha crítica apresenta mais uma categoria: o comentário, já que ela deve vir pontuada de apreciações, notas e correlações estabelecidas pelo juízo crítico de quem a elaborou. Não é suficiente descrever; é preciso julgar. De maneira geral, um julgamento (ou juízo), ainda que expresso de modo pessoal, deve ser apoiado em argumentos sólidos.

Dessa forma, a diferença essencial entre resenha descritiva e resenha crítica é a seguinte: enquanto a primeira se destina ao uso pessoal não havendo necessidade de avaliar a obra apontando, por exemplo, pontos positivos e negativos, a segunda é compartilhada com outros leitores e tem como uma das finalidade divulgar um livro recomendando ou desaconselhando sua leitura.

A descrição esquemática da resenha crítica apresentada por Roth (2002: 93) compreende quatro movimentos realizados por dez estratégias. É este tipo de esquema que deve ser seguido para a elaboração da resenha acadêmica, sendo necessário que se acrescente a primeira categoria da resenha descritiva, ou seja, a referência bibliográfica com a apresentação dos seguintes dados:

Nome do organizador e dos autores:

Título completo e exato da obra:

Lugar da publicação:

Nome da Editora:

Data da publicação:

ESQUEMA DO GÊNERO RESENHA SEGUNDO MOTTA-ROTH

Movimento 1Passo 1

Passo 2

Passo 3

Passo 4

Passo 5

  APRESENTANDO O LIVRODefinindo o tópico geral do livro     

e/ou Informando sobre a virtual audiência

e/ou Informando sobre o autor/a

e/ou Fazendo generalizações

e/ou Inserindo o livro na área

Movimento 2Passo 6

Passo 7

Passo 8

ESQUEMATIZANDO O LIVRODelineando a organização geral do livro

e/ou Definindo o tópico de cada capítulo

e/ou Citando material extratexto

Movimento 3Passo 9 RESSALTANDO PARTES DO LIVROAvaliando partes específicas
Movimento 4Passo 10a

Passo 10b

FORNECENDO AVALIAÇÃO FINAL DO LIVRORecomendando/desqualificando o livro

ou Recomendando o livro apesar das falhas

 

Bibliografia consultada:

MOTTA-ROTH, D. A construção social do gênero resenha acadêmica. In: MEURER, MOTTA-ROTH (org) Gêneros textuais e práticas discursivas: subsídios para o ensino de linguagem. Bauru, São Paulo, EDUSC, 2002.

GARCIA, O . M. Comunicação em prosa  moderna. Rio de Janeiro, Ed. da Fundação Getúlio Vargas, 1986.

SAVIOLI, F. P. & FIORIN, J. L. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo, Ática, 1991.

Comentários sobre “História da Linguagem” de KRISTEVA, J.

KRISTEVA, J. História da Linguagem; trad. Barahona, M. M. Lisboa: Edições 70, 1969.

O panorama que Kristeva traça das representações e das teorias da linguagem é abrangente tanto temporal quanto espacialmente. Isso não significa que seu texto seja superficial, pelo contrário, ele é extremamente pertinente na seleção que faz dos principais aspectos da aventura humana que as inúmeras línguas e culturas testemunharam. Certamente isso se deve à preocupação da autora em refletir a respeito da linguagem a partir da história do pensamento. Ela afirma que as representações e as teorias da linguagem abordam sob o nome de Linguagem um objeto de cada vez sensivelmente diferente, sob diversos pontos de vista. São teorias que dão testemunho sobretudo do tipo de conhecimento particular próprio de uma sociedade ou de um período histórico. Através da história dos conhecimentos linguísticos, o que se destaca é a história do pensamento. Sua obra organiza-se em três partes, subdivididas em capítulos. A Primeira Parte trata dos conceitos de língua e signo linguístico, de linguagem, fala e discurso; a Segunda Parte apresenta um panorama histórico da relação do homem com a linguagem, refletindo a evolução do conceito de linguagem e dos estudos linguísticos, principalmente no mundo ocidental; e a Terceira Parte enfoca a linguagem em sua relação com outras áreas da atividade humana, introduzindo os estudos semióticos que pretendem dar conta, além da língua, de outras formas de linguagem. Kristeva (1969:375) conclui sua obra apresentando um cenário de crise que parece concretizar-se no início do século XXI, trinta anos depois: “O predomínio dos estudos linguísticos e, mais ainda, a diversidade babiloniana das doutrinas linguísticas – essa diversidade que foi batizada com o nome de crise» – indicam que a sociedade e a ideologia modernas atravessam uma fase de autocrítica. O seu fermento terá sido esse objeto sempre desconhecido – a linguagem.”

QUANDO SE FAZ NECESSÁRIA UMA TEORIA PARA A INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS ESCRITOS? de Nílvia Pantaleoni

Olson, em seu livro O Mundo no Papel: as implicações conceituais e cognitivas da leitura e da escrita. SP: Ática, 1997, defende que o conceito ou a teoria da interpretação é o que torna consciente o processo da interpretação, sujeitando-o a considerações racionais. Enquanto a interpretação pode ser uma característica universal de todos os que utilizam símbolos, os conceitos da interpretação constituem artefatos culturais sujeitos à revisão, à mudança histórica e evolutiva. A citação serve de mote para o que passo a observar.

A primeira parte faz referência à decodificação de símbolos que pode ser considerada inata no ser humano. Todo ser vivente interpreta símbolos, índices e sinais. Trata-se de um axioma.

A segunda parte da citação envolve teorias, no plural, de interpretação, pois são múltiplas e estão atreladas ao momento histórico-cultural. Quer dizer, diferentes teorias de interpretação existiram ou existem na dependência da época e da sociedade em que estão inseridas. Quando digo que interpreto um texto, estou admitindo que tenho conceitos e pressupostos que me orientam. Por exemplo, que a minha interpretação não é a única; que procuro com esta atividade distinguir o que foi dito daquilo que se quis dizer; que não consigo ser isenta (aprendi regras, estratégias; tenho crenças e valores) ao interpretar; e ainda, que não existem textos nem discursos isolados.

Minhas inferências dependem da minha “eficiência” como leitor. Isso será suficiente para que me considere especialista na interpretação de textos escritos? Certamente que não. Para ilustrar, lembro que ler qualquer “manual de instruções” é um verdadeiro desafio para mim. Na verdade, existem problemas tanto na elaboração desse tipo de texto, quanto na minha interpretação: são frequentemente mal redigidos e não tenho paciência em seguir os passos estabelecidos para a garantia da execução da habilidade/atividade prevista pelo manual. Qualquer texto instrucional, seja para a montagem de um aparelho, seja para o preenchimento de declaração de imposto de renda, pressupõe um tipo de leitor capaz de interpretar o sentido literal, simplesmente. A dificuldade existe porque não tenho familiaridade com este tipo de texto. Faço inferências desautorizadas. Fico o tempo todo querendo descobrir “intenções” inexistentes por parte do produtor do texto Nunca me interessei por esse tipo de superestrutura e não estou familiarizada com os campos semânticos utilizados, eles não fazem parte do meu conhecimento prévio. Finalmente, apesar de não ter problema no reconhecimento de funções pragmáticas simples: gramaticalmente eu as identifico, pois sei a diferença, por exemplo, entre uma ordem, uma interrogação e uma asserção; não tenho conhecimentos prévios suficientes para entender as ordens que devo cumprir para fazer o aparelho funcionar ou para não “ser pega na malha fina” do imposto de renda.

A confissão acima é um “mea culpa” como leitora. (é forçoso admitir que, na primeira versão deste texto, a internet estava engatinhando. Hoje, minhas reflexões tomariam outro rumo) Quem me dera ser proficiente na leitura de instruções e no preenchimento de questionários investigativos. Tive dificuldade diante de um a que me submeti recentemente: “Já foi submetida a uma intervenção cirúrgica ginecológica?” Três cesarianas respondem a questão? Na dúvida, respondi “não”. Em casa, de posse do Houaiss, verifico o significado de “cesariana”. Trata-se de uma cirurgia obstétrica. Cirurgia obstétrica é o mesmo que cirurgia ginecológica? Apesar de a obstetrícia pertencer ao campo mais amplo da ginecologia, será que deveria ter respondido sim à pergunta. Coisa sem muita importância pelo destino que seria dado ao questionário, mas que serviram para minhas reflexões. A  bula de remédio, então, é um mistério para muitos leitores. A bem da verdade, e nesse aspecto até que me saio bem por conta dos estudos de radicais e prefixos gregos e latinos, gosto de ler bulas. Este tipo de texto, por conta de uma legislação que vai entrar em vigor, apresentará a versão dos especialistas, ortodoxa, original; e outra, vulgarizada, popular para o leigo. É uma forma de o leitor comum começar a ter acesso a informações básicas, antes inacessíveis.

Muita coisa pode ser dita sobre a interpretação de textos escritos. Destaco os processos inferenciais que ocorrem enquanto leio como essenciais. Mas isso é assunto para outro post.

A GRAMÁTICA DE JOÃO DE BARROS: CONTEXTO HISTÓRICO E CONCEITOS TEÓRICOS. Estudo de Ana Lúcia Tinoco Cabral e Nílvia Pantaleoni

A GRAMÁTICA DE JOÃO DE BARROS: CONTEXTO HISTÓRICO E CONCEITOS TEÓRICOS

Ana Lúcia Tinoco Cabral e Nílvia Pantaleoni

INTRODUÇÃO

Esta exploração da segunda gramática da língua portuguesa procura contextualizá-la na vertente greco-romana das gramáticas ocidentais. A escolha não recaiu sobre a primeira gramática da língua, de Fernão de Oliveira, mas sobre a segunda pelo fato de esta contemplar todas as partes de uma gramática tradicional: fonética, morfologia e sintaxe, sistematizando, com fins pedagógicos, pela primeira vez, a língua portuguesa. Traça-se o perfil do fenômeno da gramatização no Ocidente, apresentando o panorama histórico e gramatical em que se insere a gramática de João de Barros; abordam-se conceitos teórico-gramaticais fundamentais que se desenvolveram, ao longo dos séculos, a partir de Platão, com a finalidade de fornecer subsídios para a leitura crítica da obra de João de Barros; e finalmente relatam-se as observações elaboradas durante a leitura crítica. Cumpre esclarecer que este estudo não tem a pretensão de esgotar o assunto, constituindo-se numa análise que visa apenas a resgatar conceitos importantes que permeiam o processo de gramatização que se inicia com os filósofos gregos culminando no Renascimento.

1.1 HISTÓRIA DAS GRAMÁTICAS NO OCIDENTE: O FENÔMENO DA GRAMATIZAÇÃO 

É próprio de todo ser humano, em relação à língua que utiliza, independente do grau de instrução que possui ou do meio cultural em que vive, um saber que Auroux (1992) denomina saber linguístico que é múltiplo e principia na consciência do indivíduo. Este saber é epilinguístico, universal, quando se refere ao saber inconsciente que todo locutor possui da natureza da linguagem em geral e da natureza de sua língua em particular; é saber metalinguístico quando exige do indivíduo uma elaboração especulativa – situada puramente no elemento da representação abstrata – ou uma elaboração de natureza prática – utilizada pelo falante quando se propõe à aquisição de um  determinado domínio. Citam-se, como principais, em relação ao saber metalinguístico, três domínios: no campo do saber lógico, a capacidade de o locutor tornar sua fala adequada a uma determinada finalidade compreende o domínio da enunciação; no campo do saber gramatical, destacam-se o domínio das línguas – falar ou compreender a língua materna ou outra língua – e o domínio da escrita.

A aquisição do domínio da escrita, sem dúvida, foi precedido de inúmeras reflexões metalinguísticas que se perderam para sempre, justamente pela impossibilidade de registro de todas as especulações que deram origem ao processo de objetivação da linguagem representado pela aquisição desse domínio. A escrita teve inicialmente um papel mnemotécnico. Listas de palavras eram gravadas, possibilitando a sua conservação fora da memória de um indivíduo particular, dando a oportunidade de que outros indivíduos tivessem acesso a uma determinada informação, apesar da ausência de seu produtor. No século V a.C., na Grécia, a escrita vai transpor mais um patamar: de simples suporte mnemônico do oral, transforma-se no objeto de uma verdadeira leitura. Ao lado da produção de textos para serem lidos, temos o nascimento e o desenvolvimento da filologia que trata da leitura e da decifração de textos antigos, iniciando-se a longa tradição exegética dos textos homéricos na época helenística, constituindo uma disciplina filológica que se aplica à crítica de textos, e que vai levar à criação das gramáticas que se tornarão mais tarde independentes. A gramática surge, portanto, como parte do estudo literário característico da época helenística.

Neves (1987) aponta a distinção que os gregos estabeleciam entre o filólogo e o gramático: “O termo philólogos se refere àquele que se interessa pela cultura em geral; o que tenta a revisão crítica dos textos e a compreensão da obra literária se chama mais especificamente grammatikós. Este não só explica as obras como também as julga; reconhece ou não a sua autenticidade, aponta suas belezas e defeitos. Faz a correção dos textos e exerce julgamento em geral; é, portanto,um crítico, atividade que representa o poder de decidir como juiz das obras escritas”.

A tradição especificamente gramatical no Ocidente inicia-se com os gramáticos alexandrinos, que exerciam a função de bibliotecário chefe da Biblioteca de Alexandria. Considerada a mais célebre biblioteca da Antiguidade, reuniu filósofos, matemáticos, pesquisadores nas mais diversas áreas, além de tradutores. Teria possuído cerca de 700.000 títulos entre obras poéticas, literárias e científicas, com inúmeras traduções que abrangiam grande parte da produção intelectual das diversas línguas do Mediterrâneo, Oriente Médio e Índia. Foi incendiada em 47 a.C. após a entrada de César em Alexandria; foi reconstruída e novamente destruída em 391. Lamenta-se até hoje seu acervo perdido.

O primeiro bibliotecário foi Zenódoto de Éfeso (325-234 a.C.). Primeiro editor crítico de Ilíada e da Odisséia de Homero, não possuía ainda critérios gramaticais para a revisão e fixação dos textos, organizou uma lista com as palavras raras que encontrou nos textos de Homero. Aristófanes de Bizâncio (257- 180 a.C.), sucessor de Zenódoto, editou além dos textos homéricos, outros autores clássicos como Anacreonte,  Píndaro e, provavelmente, Sófocles e Ésquilo. Ele não chegou a construir um sistema gramatical, contudo sistematizou a acentuação e a pontuação, fez algumas considerações a respeito da etimologia, e, em relação às desinências, fixou as distinções de gênero, de caso e de número. Em seguida,  Aristarco da Samotrácia (215-145 a.C.) continua a tradição dos gramáticos alexandrinos. Infelizmente, todos os seus originais foram perdidos, conhecemos seu trabalho a partir dos comentários de seus discípulos. Aristarco estendeu seus estudos e publicações dos autores gregos da época helênica, fazendo uma exegese minuciosa, buscando os fatos de uso linguístico, não chegando, contudo, ao estabelecimento de regras. Acredita-se que todo conhecimento gramatical de seu tempo era dominado por ele. Conseguiu, em seus trabalhos, reconhecer oito partes do discurso: nome, verbo, particípio, pronome, artigo, advérbio, preposição e conjunção.

O verdadeiro organizador da arte da gramática na Antiguidade foi, sem dúvida, Dionísio de Trácia (170-90 a.C.), discípulo de Aristarco. Ele também se preocupou com o estabelecimento da autenticidade dos textos homéricos, pesquisando especialmente a analogia das formas sonoras. Dessa maneira, em seu pequeno manual, temos uma grande parte reservada aos estudos da fonética e o restante refere-se à morfologia, ignorando completamente a sintaxe.

Três séculos mais tarde, um outro bibliotecário da Biblioteca de Alexandria, Apolônio Díscolo (primeira metade do século II d.C.), além de ter  preocupação com a fonética, dedicando uma obra aos sons elementares, Dos elementos e com a morfologia, escrevendo separadamente sobre as oito  partes do discurso, já anteriormente estabelecidas por Aristarco da Samotrácia, será o primeiro  gramático a tratar da sintaxe das partes do discurso. De sua obra, apenas chegaram até nós os seguintes trabalhos gramaticais: Do pronome, Das conjunções, Dos advérbios e Da sintaxe das partes do discurso.  

Em relação à língua latina, os principais gramáticos que retomam e continuam os trabalhos gregos são: Varrão (116-?27 a.C.), Donato ( século IV) e Prisciano (século V). Marco Terêncio Varrão viveu em Roma, na época de César que o encarregou da organização de bibliotecas públicas. De suas 650 obras, apenas restaram três: Res rusticae, fragmentos de Res divinae e partes de um tratado de gramática, De lingua latina. O início da obra apresenta sua definição de Gramática:

A gramática tem sua origem no alfabeto; o alfabeto representa-se sob a forma de letras; as letras juntam-se em sílabas; uma reunião de sílabas produz um grupo sonoro interpretável; os grupos sonoros interpretáveis juntam-se em partes do discurso; as partes do discurso pela sua soma formam o discurso; é no discurso que se desenvolve o falar bem; exercitamo-nos no falar bem para evitarmos os erros. 

Varrão. De língua latina. Apud Bastos (1981)

 Os estudos gramaticais de Donato encontram-se reunidos em suas obras Ars Minor e Ars Maior que apresentam uma minuciosa descrição fonética da língua latina e um pouco de morfologia, contudo ignoram completamente a sintaxe, que vai ser estudada um século mais tarde por Prisciano que a define como “a disposição que visa a obtenção de uma oração perfeita”. Sua obra Institutio de arte grammatica, manual largamente usado durante toda a Idade Média para o ensino da gramática latina, vai influenciar, mais tarde, a partir do Renascimento, a constituição das gramáticas vernáculas.

O início da Idade Média, no século V, com a queda do Império Romano no Ocidente, é marcado pelas inúmeras invasões bárbaras que não lograram dissipar as influências clássicas (gregas e latinas) que foram administradas pela Igreja Católica a seu bel-prazer. Não podemos deixar de lembrar que a língua oficial adotada pela Igreja Católica no Ocidente foi o latim que, evidentemente, não era mais o clássico e que a língua oficial adotada pelo catolicismo ortodoxo que vai se fixar na parte oriental do Império Romano e vai perdurar até a queda de Constantinopla, no século XV, foi o grego. Dessa forma, a divisão do Império Romano em duas partes, com a sobrevivência da metade oriental, vai provocar uma ruptura cultural articulada em torno das duas línguas: o latim e o grego.

No Ocidente, a preocupação da Igreja em  preservar o latim através sobretudo do ensino gramatical pode ser observada, por exemplo, pelas prescrições de Isidoro de Sevilha que, no século VII, escrevia sobre a necessidade “do conhecimento satisfatório da gramática para compreender, sem o auxílio da pontuação, onde termina um grupo de palavras, onde a frase fica em suspenso e onde, finalmente, se completa o sentido”, apud Buescu (1978).

No Renascimento, a gramática como ciência de observação da linguagem, deixa necessariamente de ser latina e passa a incidir sobre as realidades das línguas vernaculares representadas pelo francês, espanhol, português, entre outras. Essas línguas surgiram basicamente a partir do latim, tomando cada uma características próprias pelo fato, principalmente, de terem sofrido a influência de diversos substratos e superestratos. Essas línguas, que podemos chamar de modernas, estarão definitivamente codificadas no final do século XVI, através das gramáticas que passam a assumir também um caráter normativo. O papel primordial dessas gramáticas, segundo Fávero, é duplo: a descrição da língua e o estabelecimento de regras, visando à garantia da hegemonia linguística nacional. (7o Congresso Brasileiro de Língua Portuguesa – PUC/SP, 1998).

O latim, durante todo o Renascimento, momento da fixação das línguas vernaculares, não é repudiado, ele vai continuar até o século XVIII a ser a língua da ciência e a liturgia católica apenas na segunda metade do século XX vai deixar de empregá-lo. Esta convivência entre o latim (notadamente na escrita, nos textos litúrgicos prefixados e mais na incontestável influência literária que vai exercer em todo Ocidente) e as modernas línguas europeias é salientada por Meillet:

Les langues nationales ont eu beau prendre de l’importance, servir depuis la Réforme à des fins religieuses, devenir l’expression de la science; derrière toutes les langues de civilisation du monde moderne, on sent le modèle latin, souvent dans des emprunts évidents, et, à défaut d’emprunts avoués, d’une manière également certaine sous des transpositions où se reconnait le modèle latin. C’est en imitant l’articulation des phrases latines que les prosateurs européens ont apris l’art d’écrire. La partie intellectuelle de toutes les langues littéraires de l’Europe occidentale est nourrie de latin.

MEILLET, A. Esquisse d’une histoire de la langue latine. 1948.

  Vale observar como o desenvolvimento e a consolidação dos países europeus, a partir do final do século XV, são acompanhados e solidificados pela preocupação dos intelectuais com o aprofundamento dos saberes metalinguísticos que vão se concretizar através da publicação das primeiras gramáticas e dos primeiros dicionários monolíngues, logo divulgados pelo oportuno aparecimento da imprensa no contexto expansionista mercantilista e colonial. Notadamente os espanhóis e os portugueses seguiram as lições dos romanos que preservaram a hegemonia política de seu império, tendo como uma das armas mais eficazes a hegemonia linguística, no caso do Ocidente, do latim, através da obrigatoriedade do emprego dessa língua em todas as situações de uso.

Dos dois países da Península Ibérica é a Espanha quem tomará a dianteira na publicação de uma gramática de língua nacional.  Elio António de Nebrija, em 1492, publica a Grammática Castellana, estabelecendo para ela três finalidades: a) fixar a língua (senão encontrar-se-ão, ao fim de cinquenta anos, tantas diferenças quanto entre duas línguas); b) facilitar a aprendizagem do latim para as crianças; e c) permitir aos estrangeiros aprender o castelhano (trata-se igualmente de converter e de dar leis aos povos conquistados). É muito significativa a dedicatória à rainha Isabel: “Reina y Señora natural de España y las Islas de nuestra mar … siempre la lengua fue compañera del imperio”…de acordo com Auroux (1992).

Reinava em Portugal D. João III na época da publicação das duas primeiras gramáticas de língua portuguesa: A gramática de Fernão de Oliveira e a de  João de Barros. A política cultural desenvolvida por seu governo foi, em muitos aspectos, extremamente benéfica: um dos benefícios concretos aos estudiosos portugueses foi a concessão de bolsas, o que permitiu a difusão do pensamento humanista em Portugal. Além disso, devemos destacar dois momentos de especial significado cultural: a reforma da Universidade e a criação do Colégio das Artes. Embora pessoalmente D. João III não fosse muito dado às letras, ele pode ser considerado um mecenas, preocupando-se com a preparação intelectual da classe dirigente, isto é, com os nobres portugueses, entre outras coisas, para que fosse possível um confronto com as idéias luteranas que, nesse momento, já  se espalhavam pela Península Ibérica, pondo em risco a ortodoxia religiosa tão cara a ele, conhecido como “O Rei Piedoso”, responsável pela introdução da Inquisição em Portugal. Uma das consequências funestas da Inquisição foi a introdução da censura representada por três instituições que deveriam aprovar qualquer publicação: o Paço, o Santo Ofício e o Ordinário Eclesiástico. A gramática de João de Barros é uma das obras que vai entrar no rol das obras parcialmente vetadas, ainda que momentaneamente, pela suspeita de erasmismo (idéias de Erasmo de Roterdam, autor de “O elogio da loucura”, que se recusara a tomar partido na disputa entre protestantes e católicos).

Foi em 1536 que surgiu em Lisboa o nosso primeiro manual de gramática portuguesa: a Grammática de Lingoagem Portuguesa da autoria de Fernão de Oliveira (1507 – 1580 ou 1581). Fernão de Oliveira qualificava modestamente sua obra como “a primeira anotação da Língua Portuguesa”. Sem preocupação didática, ele consagra a maior parte à descrição fonética, apresenta um breve estudo de alguns problemas de morfologia e reserva apenas uma página à sintaxe que ele denomina “construção”. O espírito de homem do Renascimento é evidente em sua pequena obra, com frequência ele faz alusão ao fato de que a língua portuguesa faz parte de um contexto linguístico maior afirmando que ela é aparentada à castelhana e estabelecendo analogias não só entre o latim e o grego, mas também entre a língua dos Hebraicos e dos Arábigos. A descrição fonética que ele faz da língua portuguesa, precedendo o trabalho dos gramáticos comparatistas do século XIX, ao compará-la à língua castelhana merece ser, pelo menos, em parte transcrita:

Examinemos a melodia da nossa língua e essa guardemos, como fizeram outras gentes, e isto desde as mais pequenas partes, tomando todas as vozes e cada uma por si e vendo em elas quantos diversos movimentos faz a boca como também diversidade do som e em que parte da boca se faz cada movimento, porque nisto se pode discutir mais distintamente o próprio de cada língua. E assim é verdade, que os Gregos com os Latinos e os Hebraicos com os Arábigos e nós com os Castelhanos que somos mais vizinhos, concorremos muitas vezes em umas mesmas vozes e contudo não tanto que não fique alguma particularidade a cada um por si uma só voz e com as mesmas letras e a nós e aos castelhanos guerra e papel. E no pronunciar quem não sentirá a diferença que temos porque eles escondem-se e nós abrimos mais a boca? E quase podemos dizer que o que dá a entender Horácio na Arte Poética dos Gregos e Latinos temos entre nós e os castelhanos porque a eles deu a a natureza afeiçoar o que querem dizer e nós falamos com mais magestade e firmeza.

Fernão de Oliveira, Grammática, capítulo VII. apud Buescu(1978)

João de Barros (1496-1570) nasceu em Vila Verde, próximo à cidade de Vizeu, no nordeste de Portugal, e morreu na sua quinta de Ribeira de Alitém, perto de Pombal. Era um homem da corte na época de D.João III, tendo em sua juventude exercido, inclusive, o papel de “moço-de-guarda-roupa” do, então, príncipe D. João. Teve uma vida muito produtiva intelectualmente, não deixando de lado o espírito aventureiro dos portugueses do século XVI, entrando numa empresa temerária com mais dois sócios: montou uma frota de dez navios para procurar, em vão, ouro no norte do Brasil, na capitania do Maranhão. De sua obra extensa e variada, nos interessa o programa pedagógico que ele se propôs a realizar entre os anos de 1539  e 1540, escrevendo a Cartinha para aprender a ler, dedicada ao filho de D.João III, D.Filipe, morto  precocemente; em seguida, Cartinha com os preceitos e mandamentos da Santa Madre Igreja e, finalmente, Gramática da Língua Portuguesa, seguida de Diálogo em louvor de nossa linguagem. Ainda em 1540, publica mais dois diálogos, sempre com intuito pedagógico, pensando principalmente em seus filhos (curiosamente, alguns deles foram alunos do primeiro gramático da língua portuguesa, Fernão de Oliveira): Diálogo da Viciosa Vergonha e Diálogo de João de Barros com dous filhos seus sobre preceitos moraes em forma de jogo.  Digno de nota é o elogio que João de Barros faz da língua portuguesa e de seu contemporâneo Gil Vicente:

A linguágem portuguesa, que tenha ésta gravidade, nam pérde a força pera declarár, mover, deleitár e exortár, a párte a que se enclina, seja em quál género de escritura. Verdáde é ser em si tam honésta e cásta, que paréçe nam consistir em si ua tál óbra como Çelestina. E Gil Viçente, cómico que â máis tratou em composturas que algua pessoa destes reinos, nunca se atreveu a introduzir um Çentúrio português, porque, como ô nam consentem e naçám, assi ô nam sófre a linguágem. “Cérto, a quem nam falecer matéria e engenho para demonstrár sua tençám, em nóssa linguágem nam lhe falecerám vocábulos, porque de crer é que, se Aristóteles fora nósso naturál, nam fora buscár linguágem emprestáda pera escrever na filosofia e em todalas outras matérias de que tratou.

João de Barros, Diálogo em louvor da nossa Linguágem

1.2. CONCEITOS TEÓRICOS DOS GRAMÁTICOS DA VERTENTE GRECO-LATINA

Os gregos empregam o termo grammatiké para designar a arte de ler e escrever, enfatizando a língua escrita desde o início. Para Platão (427-347 a.C.), a gramática é o téchne (arte) que regula a atribuição das letras na formação dos nomes permitindo a possibilidade de combinação eficaz entre as letras; sendo, portanto, um sistema de regras que gera enunciados múltiplos. Devemos observar que, para Platão, grámma (letra) não tem o sentido etimológico de símbolo gráfico, designando na realidade o som. Aristóteles (384-322a.C.) amplia o conceito de gramática, pois a considera uma disciplina didática na medida em que faz parte da educação elementar, compreendendo o ensino da escrita e da leitura através de uma exposição sistemática dos fatos de língua depreendidos das obras literárias. O manual de Dionísio de Trácia recebeu o nome de téchne grammatiké, essa gramática tem um intuito didático, examinando os fatos da língua  com o objetivo de estudar e preservar os textos representativos da cultura helênica, prescrevendo o que considerava o grego puro numa época de influências culturais estranhas ao purismo do grego antigo. Para Dionísio, a gramática tem uma natureza prática, não especulativa; não é uma disciplina filosófica, fixando-se num domínio totalmente linguístico. Trata-se da valorização do conhecimento empírico recuperado pela leitura dos poetas e dos prosadores que ele tomava como exemplares.

Platão, para dar conta da relação da linguagem com o pensamento, apresenta, em O Sofista, as bases de uma análise de proposições em termos de um esquema tema-rema, em que define o enunciado mínimo decomposto em dois constituintes dos quais cada um é ligado a uma categoria morfológica. Aristóteles vai além e desenvolve a teoria das categorias, que será muito comentada pelos estudiosos da linguagem na Antiguidade, na Idade Média e até a época moderna. As categorias são dez, e correspondem aos esquemas de predicação; seis delas correspondem às formas nominais e as outras quatro dizem respeito ao sistema verbal:

  1. Substância [exemplo: homem, cavalo];
  2. Quanto (quantidade) [exemplo: de dois cúbitos; de três cúbitos];
  3. Qual (qualidade) [exemplo: branco, instruído]
  4. Relativamente a que (relação) [exemplo: duplo, metade, maior]
  5. Onde (lugar) [exemplo: na escola, no mercado]
  6. Quando (tempo) exemplo: ontem, ano passado]
  7. Estar a postos (posição) [exemplo: ele está deitado, ele está sentado]
  8. Estar em estado (posse) [exemplo: ele está calçado, ele está armado]
  9. Fazer (ação) [exemplo: ele corta, ele queima]
  10. Sofrer (paixão) [exemplo: ele está cortado, ele está queimado]

Observamos que as categorias de pensamento, propostas por Aristóteles são, na realidade, como observou E.Benveniste (1995), categorias de língua. As seis categorias que se referem às formas nominais encontram sua unidade nas especificidades da morfologia grega. Quanto às formas verbais, cumpre esclarecer que os gregos possuíam em sua morfologia, dentre suas formas verbais, uma voz que se intercala entre o ativo e o passivo, o médio. Além disso, o perfeito grego não tem apenas um valor temporal, mas indica, conforme o caso, uma maneira de ser do sujeito, que indica o fato de estar em um certo estado.

A téchne grammatiké de Dionísio de Trácia foi elaborada a partir de um esquema das partes do discurso que reflete a sedimentação das concepções de seus predecessores, sejam elas filosóficas, lógicas ou poéticas. Quanto à metodologia gramatical, o princípio organizador é o da divisão. Divide as categorias gramaticais em classes de palavras flexionadas (por exemplo, gênero, espécie, figura, número, caso para o nome; modo, diátese, espécie, figura, número, pessoa, tempo e conjugação para o verbo; gênero, número e caso para o artigo; pessoa, gênero, número, caso, figura e espécie para o pronome) ou palavras não flexionadas (advérbio, preposição e conjunção). Esta classificação por divisão deve ser observada sob dois pontos de vista: de um lado, como a descrição gramatical a partir de uma matriz cognitiva com intuito pedagógico e, de outro, como a aplicação do método de Platão de uma análise de proposições em termos de um esquema tema/rema.

Entre as sistematizações gramaticais, a de Dionísio de Trácia é sa mais importante porque pode ser considerada representativa do procedimento gramatical que surgiu na época alexandrina e porque é o modelo sobre o qual se apoiaram, em geral, as gramáticas ocidentais. Embora seu manual não apresente uma organização global, ele apresenta um procedimento de decisão no estabelecimento das classes de palavras e um modo de definição que podem ser reduzidos a determinadas linhas, com certa coerência.

Verifica-se que:

  • nas definições prevalecem os critérios formais, interferindo flexão e posição;
  • na própria definição prenunciam-se classificações;
  • distingue-se entre inventários abertos (em que há exemplos) e fechados (em que se apresenta lista exaustiva).

No quadro de classificação gramatical de Dionísio de Trácia as formas linguísticas são consideradas sob diversos aspectos. As definições apresentadas configuramuma consideração morfológica, ou, mais especificamente, morfossintática. A consideração fica, porém, no nível da palavra: nem, morfologicamente, desce ao exame dos elementos constitutivos vocabulares nem, sintaticamente, vai às relações intervocabulares. Acima de tudo, o que se encontra são elementos de flexão e de distribuição. Isso é gramática e, a partir daí, podem rotular certas indicações nocionais esporádicas como extragramaticais.

É importante salientar que, embora preocupados com o caráter pedagógico da gramática, os filósofos gregos desenvolvem, na realidade, doutrinas sobre a linguagem, examinando os seus princípios, definindo as categorias que as palavras expressam. Demonstram, na verdade, uma preocupação basicamente filosófica. Predominam problemas de definição, relativos, por exemplo, à essência da linguagem, e às categorias da língua.

Durante a Idade Média, a gramática era considerada uma ciência que tinha como objeto as categorias gramaticais do latim, seu papel era didático, preparando os estudantes para as principais disciplinas universitárias, desenvolvendo-se, portanto, no círculo fechado das universidades europeias. Tinha como principais fontes as Artes de Donato e as Institutiones de Prisciano. Apenas durante o Renascimento teremos um alargamento do horizonte linguístico, através do inventário das línguas conhecidas e de sua descrição gramatical e lexical.

Os autores das gramáticas vernaculares do  Renascimento, dentre eles, João de Barros (1540) buscaram fundamentação em duas fontes: a grega antiga (Dionísio de Trácia) e a latina (Prisciano).No caso particular de João de Barros, há além das fontes citadas, a influência de Nebrija, autor da primeira gramática castelhana.

1.3 ANÁLISE CRÍTICA DA GRAMÁTICA DE JOÃO DE BARROS

A edição da Gramática de Língua Portuguesa que passamos a analisar é a 3a, publicada em 1957, organizada por José Pedro Machado. Da 1a edição só se conhece um exemplar que se encontra na Biblioteca da Ajuda; a 2a edição, de 1785, faz parte de uma compilação de várias outras obras feitas pelos monges da Real Cartucha de N.S. da Escada do Ceo, em Lisboa. José Pedro Machado respeitou o texto original de 1540, contudo, como seu objetivo era de divulgação e não propriamente científico, fez as seguintes alterações: atualização da ortografia naquilo que não aplicasse alterações fonéticas, pontuação e abertura de parágrafos.

A obra apresenta a seguinte divisão:

1o capítulo: Definção da gramática e as partes dela – pp. 1 e 2.

2o capítulo: Definção das lêteras e número delas – pp. 2 e 3. (ortografia)

3o capítulo: Da sílaba e seus acidentes – pp. 3 e 4. (prosódia)

4o capítulo: Da dição – da p. 4 à p. 41. (dição)

 Do nome e das suas espécies

 Dos artigos

 Do pronome e seus acidentes

 Do verbo

 Do avérbio

 Da preposição

 Da interjeição

5o capítulo: Da construição – da p. 42 à p. 54. (sintaxe)

 Da concordância do nome sustantivo com o ajetivo

 Do regimento dos verbos

 Dos verbos impessoais

 Do regimento dos nomes

 Do regimento do avérbio

 Da preposição

 Da conjunção

 Da interjeição

 Das figuras

6o capítulo: Da ortografia – da p. 54 à p. 67.(ortografia)

Das lêteras que temos e da sua divisão

 Das lêteras consoantes

 Das lêteras dobradas que usamos

 Das lêteras numerais

 Regras da ortografia

 Regras particulares de cada lêtera

 Dos pontos e distinções da oração

1o capítulo: Definção da gramática e as partes dela

A definição de gramática que ele apresenta na 1a parte é, primeiramente, etimológica: Gramática é vocábulo grego. Quer dizer ciência de letras… 

Em seguida, ele diz como os gramáticos a definem: segundo a definção que lhe os gramáticos deram, é um modo certo e justo de falar e escrever, colheito do uso e autoridade dos barões doutos. 

Nota-se que ele compartilha com outros gramáticos uma preocupação em definir a norma, a língua exemplar que ele vai apresentar, por meio de exemplos dos barões doutos, contudo não ignora que existam outros meios de falar e de escrever, já que a gramática é um modo certo e justo, não o único.

Curiosamente, apesar de  não pretender escrever uma gramática especulativa, filosófica, ele faz alusão ao que denominamos “universais linguísticos”, empregando a *metáfora, mais tarde retomada por Saussure, do jogo de xadrez para definir linguagem: E como pera o jogo de enxedrez se requerem dous reis, um de ua cor e outro de outra e que cada um deles tenha suas peças postas em casas próprias e ordenadas, com leis do que cada uma deve fazer (segundo o ofício que lhe foi dado) . assim tôdalas linguagens têm dous reis, diferentes em género e concordes em ofício: a um chamam nome e ao outro verbo. 

Também nesta parte introdutória, ele vai prestar o seu tributo à língua e à gramática latinas, afirmando que a divisão de  sua gramática imita a latina, pelo fato de sermos filhos do latim, e não somos degenerados, isto é, devemos reconhecer a importância do legado dos antigos que dividem a gramática em quatro partes: ortografia, que trata da letra; prosódia, que trata  da sílaba; etimologia, que trata da dição; e sintaxe, que trata da construção. 

2o capítulo: Definção das lêteras e número delas

Para definir o que é letra, João de Barros recorre aos gramáticos antigos e estabelece uma inusitada analogia entre as letras e os quatro elementos: o ar, a terra, o fogo e a água: Lêtera, segundo os Gramáticos, é a mais pequena parte de qualquer dicção que se pode escrever, a que os Latinos chamaram nota e os Gregos cara[c]ter, per cuja valia e poder formamos as palavras; e a esta formação chamam eles primeiros elementos da linguagem, cabem como do ajuntamento dos quatro elementos se compõem tôdalas cousas, assim do ajuntamento das lêteras uas com as outras por ordem natural se entende cada um em sua linguagem, pola valia que pôs no seu A, b, c. Donde as lêteras vieram ter estas três cousas: nome, figura, poder. Nome, porque à primeira chamam A, à segunda Bê, à terceira Cê. Figura, porque se escrevem desta maneira: A, b, c. Poder, pola valia que cada ua tem, porque, quando achamos esta lêtera A, já sabemos que tem a sua valia, e, por semelhante modo, podemos julgar das outras, que em número são vinte e três, como as dos Latinos de quem as nós recebemos. 

Poder e valia são princípios gramaticais empregados por João de Barros que os empresta dos antigos e que, por sua vez, vão ser retomados pelos linguistas do século XX, é o que Saussure denomina de Valor da unidade linguística.

3o capítulo: Da sílaba e seus acidentes

Sílaba é ua das quatro partes da nossa Gramática que corresponde à Prosódia, que quer dizer acento e canto. A qual Sílaba é ajuntamento de ua vogal com ua e duas e às vezes três consoantes que juntamente fazem ua só voz.

Nota-se que João de Barros apresenta uma visão falha de sílaba por não contemplar em sua definição a sílaba composta apenas de vogal e os encontros vocálicos que participam da mesma sílaba, contudo, no último capítulo, ele observa que: Chamam-se estas lêteras vogais, porque cada ua per si, sem ajuntamento de outra, faz perfeita voz e trocadamente, uas com as outras, fazem estes sete ditongos: ai, au, ei, eu, ou, oi, ui.

Em relação aos acidentes da sílaba, ele nos apresenta três: número de letras – serão no máximo três consoantes, como é o caso de li – vros ; espaço de tempo – há sílabas longas e curtas, como é o caso de Bár – ba – ra ( a primeira é longa e as demais são curtas); e canto –  que pode ser alto ou baixo, correspondendo ao que atualmente denominamos tonicidade e atonicidade das sílabas da língua portuguesa que é, como sabemos, uma língua de icto.

4o capítulo: Da dição

João de Barros inicia este capítulo (o mais extenso, por sinal) explicando que ele corresponde à parte da gramática que os latinos chamavam de etimologia que quer dizer “nascimento da dição” (p.4). Entretanto, como crê ser impossível encontrar as origens das palavras(“seria ir buscar as fontes do Nilo”, p.4) passa logo ao tratamento das partes da dição: o nome, o artigo, o pronome, o verbo, o avérbio, a preposição e a interjeição. Nota-se que ele utiliza a classificação de Dionísio de Trácia, acrescentando-lhe o artigo e a interjeição e eliminando a conjunção, mencionada apenas no capítulo da construição (sintaxe).

Do Nome e suas espécies

Define o nome por oposição ao verbo: nome é “aquele que declina per casos, sem tempo”; verbo “conjuga-se per modos e tempos”. São definições essencialmente formais (flexão), diferentemente das encontradas nas gramáticas tradicionais da atualidade, que são filosóficas ou semânticas. Em contrapartida, a distinção que faz entre concreto e abstrato é essencialmente nocional: ”tem corpo”/“não tem corpo”.

Atribui ao nome os seguintes acidentes: qualidade, espécia, figura, género, número e declinação per casos. Qualidade é ua diferença pela qual conhecemos um do outro; definição que não esclarece nada ao leitor sobre o conceito de qualidade do nome. Subdivide as qualidades em próprio, comum, apelido, sustantivo, ajetivo, relativo e antecedente. Note-se que João de Barros considera substantivo e adjetivo como qualidades do nome, classificações dentro da classe nome.

Apresenta as “qualidades do nome” sempre em pares opositivos, definindo uma por oposição à outra, prática costumeira também em nossas gramáticas:

  • Do nome próprio e comum;
  • Do nome sustantivo e ajetivo;
  • Do nome relativo e antecedente;

Define adjetivo por sua dependência ao substantivo, estabelecendo implicitamente que existe sempre entre esses dois “nomes” uma relação sintagmática, em que só o adjetivo não sobrevive sem o substantivo.

Na classificação que faz dos nomes relativos e antecedentes, inclui vários fatos linguísticos simultaneamente: o substantivo antecedente do pronome relativo, a anáfora, representada pelo pronome anafórico a que ele chama de relativo a um antecedente, os conectivos comparativos, a que denomina “relativos de acidente”. Esclarece ainda que as declinações desses relativos será incluída nas dos pronomes, o que demonstra uma organização bastante aleatória, pouco científica.

No que diz respeito à espécie do nome,  classifica-o em primitivos e derivados, retomando uma classificação já existente em Dionísio de Trácia, que se baseou nas espécies já registradas pelos filósofos para apresentar um sistema de unidades relacionadas.

Apresentamos, a título de ilustração, um quadro comparativo da classificação do nome nos dois gramáticos.

NOMES (quanto à forma)
PRIMITIVOS DERIVADOS
    Dionísio de Trácia João de Barros
  PatronímicoPossessivo

Hipocorístico*

 

 

 

Comparativo

 

Superlativo

 

Parônimo

Verbal

 

PatronímicoPossessivo

 

Diminutivo

Aumentativo

Comparativo

Denominativo

 

Adverbial

Participial

 

Verbal

* Hipocorístico: vocábulo familiar carinhoso, apelido

É interessante a observação que faz quanto ao efeito de sentido produzido pelo emprego dos aumentativos”como mulherão, cavalão, valhacaz, ladrabaz, e outros que sempre são ditos em desprezo e abatimento da pessoa ou cousa a que os atribuímos”. Percebe-se aí uma preocupação com o uso da língua.

Os nomes averbiais são derivados dos avérbios: “soberano de sobre; avantage de àvante; forasteiro de fora; traseiro de trás.Observa-se que o que ele considera nomes averbiais são, na realidade, substantivosderivados de advérbios. Os advérbios constituem uma classe à parte. Os nomes verbais são derivados de verbos; os nomes de patronímico indicam “o filho de”. Assim, os nomes derivados recebem sua nomenclatura seja de sua deriva, seja de sua função, a que ele chama de significação.

A figura do nome diz respeito à distinção entre simples e composto. Apresenta várias formas de composição, associando diferentes classes de palavras. Não faz alusão a “radical”, mas à impossibilidade de se manter o significado com a divisão das palavras simples, apelando para critérios nocionais.

Ao apresentar o género do nome, emprega uma abordagem comparativa, com o intuito de justificar o emprego do artigo aliado à desinência de gênero, a que ele atribui o papel de significação. Inclui o género neutro e o comum a dois e comum a três, estes últimos apenas para os nomes ajetivos.

Com relação ao número do nome, é bastante vasta a lista dos nomes que considera irregulares, pelo fato de se apresentarem sempre no plural ou no singular. Nota-se uma preocupação normativa e pedagógica que lança mão do mesmo recurso metodológico de Dionísio de Trácia que trabalha com listas exaustivas de inventário fechado.

Os casos do nome, na Gramática de João de Barros são: nominativo, genitivo, dativo, acusativo, vocativo e ablativo: a nossa linguagem declina-se em outras duas a ua podemos chamar vogal , por ser dos nomes que acabam nas vogais; e a outra consoante, por acabarem os nomes que per ela declinamos nestas cinco consoantes, l, m, r, s, z. Declinação acerca de nossa linguagem quer dizer “variação”, porque, quando variamos um nome de um caso ao outro em seu artigo, então a declinamos…

Observamos que, na língua portuguesa, o nome não sofre alterações desinenciais em cada caso. Na realidade, o autor os mantém apenas por fidelidade ao latim, ou para que sirva de auxílio para o estudo dessa língua posteriormente, um dos objetivos de sua obra.

Dos Artigos

Apresenta o artigo como “hua das partes da oração”. É uma definição de caráter sintático, que considera a função do artigo. Aponta ainda as declinações dos artigos, que segundo os casos, especificam as preposições a serem empregadas ou a ausência delas.

Tendo em vista o fato de o artigo estar diretamente ligado ao nome (é necessário artigo masculino ao nome masculino…), logo após ter apresentado as declinações para o artigo, aborda as declinações do nome e, em seguida, as flexões de número para os nomes.

É uma forma bastante desordenada de apresentação dos fatos de língua, se tomarmos por base os temas isolados ou as gramáticas tradicionais modernas. Entretanto, como o seu intento é pedagógico, o autor agrupa temas que ele julga afins e que, por isso, podem facilitar a compreensão por parte dos pupilos. Percebe-se nele uma visão global dos fatos linguísticos, mais voltada para o funcionamento da língua do que para as partes em si.

Do Pronome e seus acidentes

João de Barros considera apenas os pronomes pessoais e os demonstrativos. Atribui a eles os seguintes “acidentes: espécia, género, número, figura, pessoa e declinação”(p.19).

Quanto à espécia, classifica os pronomes em primitivos e derivados. São primitivos os pronomes pessoais e demonstrativos (eu, tu, si, este, esse ele) e derivados os pronomes possessivos (meu, teu, seu, nosso, vosso). Apresenta, ainda como demonstrativos os pronomes Eu, nós, tu, vós, este, estes e, como relativos, os pronomes ele e esse. Postula a existência de três géneros para os pronomes: masculino, feminino e neutro, a este último correspondem os indicadores dêiticos eu, tu, de si.

Do Verbo

A definição apresentada por João de Barros atende a dois critérios simultaneamente: um formal, que diz respeito à flexões e outro nocional, que diz respeito ao significado que verbo engloba. Verbo, segundo definição de todos os gramáticos, é ua voz ou palavra que demonstra obrar algua cousa, o qual não se declina como o nome e pronome per casos, mas conjuga-se per modos e tempos…

Apoiando-se nos latinos, divide os verbos em sustantivos e aietivos. O verbo ser é o verbo sustantivo, os demais são ajetivos.

Classifica também os verbos quanto ao género, tendo dois géneros: o autivo eo passivo. Acrescenta ainda a classificação verbo neutro, para aqueles que não podem ser convertidos de ativa para passiva. A explicação para esse fato é novamente sintática, considerando as relações sintagmáticas, reforçando o conceito de visão globalizada da língua, em que as partes se entrelaçam no exercício de suas diversas funções.

Ao tratar da impessoalidade do verbo, recorre novamente aos latinos para explicar os fatos portugueses por comparação aos latinos. Cumpre observar que, embora esteja tratando da impessoalidade do verbo como manifestada pela conjugação na terceira pessoa do singular, João de Barros apresenta as formas verbais hei, hás, dentro do mesmo capítulo dos impessoais, deixando a impressão de que os classifica assim. Em seguida, esclarece que são verbos neutros.

Quanto à espécie, classifica o verbo em duas: primitiva e dirivativa. Os derivativos, pelos exemplos que apresenta, são formados por afixação e subdividem-se em: aumentativos, diminutivos, denominativos, averbiais. Com relação aos aumentativos e diminutivos, cumpre observar o critério semântico para tal classificação: aumentativos são aqueles que significam aumento e contínuo acrecentamento daquilo que os seus primitivos sinificam, com: de branquejar, embranquecer, de tremer, estremecer…Diminutivos serão aqueles que significam (sic) algua mais diminuição que seus primitivos, como: de chorar, choromingar, de bater, batocar…

Apresenta, também para o verbo, a classificação simples/composto, quanto à figura, estabelecendo, na realidade, uma distinção entre primitivo e derivado, pois exemplifica com um verbo derivado por prefixação.

Baseia-se na gramática latina para a determinação dos tempos  e modos verbais. São cinco os tempos: presente, passado por acabar, passado acabado, passado mais que acabado e vindouro ou futuro. São, também, cinco os modos: indicativo, imperativo, outativo ou desejador, sujuntivo e infinitivo. Estabelece uma analogia entre as pessoas do verbos e os pronomes.

Nota-se que João de Barros, no tratamento das conjugações verbais, tem sempre como referência a gramática latina a que faz menção constantemente.

Do avérbio

Define advérbio recorrendo a critérios sintáticos: é ua das partes da oração que sempre anda conjunta e coseita com o verbo e daqui tomou o nome, porque ad quer dizer “cerca” e composto como verbum  fica adverbium, que quer dizer acerca do verbo.

Apresenta, em seguida, uma definição filosófica: Assi tem o avérbio este poder, acrecenta, diminui e totalmente destrui a obra do verbo a que se ajunta …dá aos verbos cantidade ou calidade acidental…

Estabelece uma analogia entre o advérbio e o adjetivo, pela função: como o ajetivo ao sustantivo. Apresenta uma lista de advérbios, de acordo com a sua significação.

Da preposição

João de Barros não afirma que a preposição faz parte da oração, com o faz para as outras classes de palavras, apenas menciona que é uma das partes da gramática.

Distingue dois tipos de preposição: per ajuntamento ou per composição. As preposições propriamente ditas, classifica como de “figura singela” e as composições, como de “figura dobrada”, seja, pela composição entre um verbo e uma preposição justapostos, como, por exemplo, aprazer, comprazer, desprazer. Inclui nas preposições dobradas, ou compostas, as locuções prepositivas e as locuções adverbias. Cumpre observar que o autor não faz distinção entre o que denomina preposição composta e verbo composto.

Da interjeição

Apresenta uma definição de interjeição puramente filosófica: não é mais que ua denotação do que alma padece. Novamente faz lembrar que sua gramática se baseia na latina.

5o capítulo: Da construição       

O capítulo refere-se à sintaxe que o autor subdivide em concordância e regimento, tratando, logo em seguida das figuras, mais exatamente dos vícios da linguagem: os barbarismos e os solecismos.

Em relação à concordância e regimento, ele apresenta uma distinção de cunho filosófico, ao considerar a concordância, um universal linguístico e o regimento (regência) particular de cada língua: é uma conveniência antre partes postas em seus naturais lugares, per as quais vimos em conhecimento dos nossos conceitos. E bem como ao homem é natural a fala, assi lhe é natural a conveniência destas partes: nome sustantivo com ajetivo, nominativo com verbo, relativo com antecedente. Quanto ao regimento das outras partes, cada nação tem a sua ordem e por não serem universais a todos, lhe podemos chamar acidentais.

Com respeito às figuras, ele retoma uma definição do retórico romano Quintiliano (século V), ao afirmar que figura é ua forma de dizer per algua arte nova, contudo ele vai ignorar os ornamentos do estilo, elencando apenas os vícios.

Apresentamos o inventário feito por João de Barros, do que ele considera “barbarismos”, contudo, é interessante verificar que grande parte deles, na realidade, eram metaplasmos que nossa língua vinha sofrendo há muito tempo, antes de poder se estabilizar graças, sobretudo, ao trabalho dos intelectuais do Renascimento.

Barbarismo é vício que se comete na escritura de cada ua das partes ou na pronunciação.

quer dizer

Próstesis Acrescentamento… …de lêtera ou sílaba ao princípio… até aqui   por té qui
Aféresis Cortamento… …de lêtera ou sílaba ao princípio… determinar  por terminar
Epêntesis Interposição… …de lêtera ou sílaba na dição… todos os   por tôdolos
Síncopa Cortamento… …de lêtera ou sílaba no meio da dição… letra   porlêtera
Paragoge Acrescentamento… …de lêtera ou sílaba no fim de algua palavra… guardare  porguardar
Apócopa cortamento de fim… …que é o contrairo de estoutra que acrescenta… a mó de falar pora modo de falar
Diéresis Apartamento… …de ua sílaba em duas partes… poemos  porpomos
Sinéresis Ajuntamento… …per ela ajuntamos duas lêteras vogais em ua… s’houver  porse houver
Sinalefa Apartamento… …que é casi como a de cima… dandar daqui porde andar daqui
Antítesis postura de lêtera ua por outra… …principalmente nesta lêtera x, que tomamos da pronunciação mourisca dixe  por disse
Metátesis Transposição… …porque per elas trastrocamos as lêteras… apretar  porapertar

6o capítulo: Da ortografia

A ortografia, ciência de escrever dereitamente, é delimitada ao estudo de cada letra do alfabeto que, na realidade, pretende ser uma descrição, pelo menos parcial, dos sons que estas letras representam. Por exemplo, dividindo as consoantes em mudasb, c, v, f, g, p, q, t; e meias vogais  —l, m, n, r, s, x, z .

João de Barros estabelece as seguintes regras para quem pretender escrever dereitamente:

  • A primeira e principal regra da nossa ortografia é escrever tôdalas dições com tantas lêteras com quantas as pronunciamos, sem poer consoantes ociosas;
  • nenhua dição ou sílaba podemos escrever acabada em muda;
  • nenhua dição podemos escrever com lêtera dobrada, senão com as  meias vogais: l, m, n, r, s;
  • toda dição que se escrever com lêtera dobrada, a primeira das lêteras será da precedente sílaba e a segunda da seguinte, como nestas dições: nos-so e guer-ra; e
  • todo o nome que no singular acaba em algua sílaba destas:   am, em, im, om, um, no plural, em lugar de m, se porá til, como nestas dições.

III – CONCLUSÃO

Do século V de nossa era até o final do século XVI se desenrola um processo único em seu gênero: a gramatização, a partir de uma só tradição linguística inicial (a greco-latina), das línguas do mundo. Para os gregos e os romanos, a gramática era uma etapa de acesso à cultura escrita; para o europeu da Idade Média, o latim é antes de tudo uma segunda língua – cada vez mais abstrata, objeto de uma gramática teórica -, língua conceptualmente sofisticada do saber letrado, do poder e da religião. A constituição das gramáticas vernáculas está ligada à formação das nações europeias no século XV e XVI e se deve principalmente a três fatores:

  • A renovação da gramática latina feita a partir do Humanismo que tinha como uma das prioridades a restauração do latim da época clássica;
  • A imprensa que, no seu papel de agente multiplicador, barateia o custo de cada exemplar, aumentando a sua difusão; e
  • A contemporaneidade com as grandes descobertas que vão mudar o perfil do planeta, delineando novos e imensos territórios que vão sendo conquistados também com a imposição da língua instrumentalizada pelas suas gramáticas.

Em relação à atividade gramatical, podemos afirmar que ela é fundadora em dois aspectos: no formato descritivo da língua, que fará uma longa carreira no Ocidente e numa concepção da linguística reduzida ao inventário das categorias (paradigmáticas e, em seguida sintagmáticas, apesar da análise pouco aprofundada) de uma única língua que se deseja fixar num estado normativo. Os tratados gramaticais apresentam geralmente três características: ponto de vista categorizante, perspectiva monolingual, abordagem normativa. Além disso, deve-se considerar que os gramáticos antigos tinham consciência da existência de outras línguas e mesmo das variantes dentro da própria língua, mas isso não influía na sua análise gramatical; apenas os gramáticos romanos, no final da Antiguidade começaram a se incomodar com o fato de estarem transferindo o modelo grego para a  língua latina. O saber gramatical dos antigos não se constitui num bloco monolítico nem é um inventário fixado de uma vez por todas; a confrontação dos manuais gramaticais nos mostra a evolução de uma técnica gramatical presente em várias dimensões: é um saber flexível, aberto, que se dobra às necessidades do ensino caracterizado pelas inovações que se alinham aqui e ali ao lado dos traços conservadores e das convicções ultrapassadas; dessa forma,  priorizavam alguns conteúdos em detrimento de outros. Por isso, atualmente, quando se estudam as gramáticas tanto da Antiguidade greco-romana, quanto as gramáticas vernáculas do Renascimento, deve-se levar em consideração o momento histórico e cultural em que estão inseridas.

Especificamente em relação à gramática de João de Barros, podemos afirmar que se trata da primeira sistematização dos saberes metalinguísticos a respeito da língua portuguesa já  que a obra de Fernão de Oliveira não traz a preocupação sistematizadora e didática de sua gramática.  É nesse sentido que João de Barros fixa um objetivo: porque nossa tenção é fazer algum proveito aos mininos que per esta arte aprenderem, levando-os de leve a grave e de pouco a mais. 

E delimita com precisão a extensão de seus estudos, não ultrapassando a oração: e leixando as figuras e vícios poéticos, trataremos somente daqueles per que mais commumente falamos em oração soluta, porque como já disse quando tratei do acento, as cousas que competem aos poetas ficaram pera quando for restituído a este reino o uso das trovas.

Existe de sua parte a consciência de que o latim é a língua “mater”, de que por meio dele, recebemos influência do grego, também é ciente da proximidade da nossa língua com a castelhana e não ignora a origem mourisca (árabe) de certos vocábulos, como almoxarifado e a própria letra “x”.

Fica clara a influência de Dionísio de Trácia sobre a gramática de João de Barros, assimilada provavelmente de Nebrija. Recorre aos mesmos procedimentos daquele gramático, apesar de não citá-lo:

  • Nas definições prevalecem os critérios formais, interferindo flexão e posição e função;
  • Na própria definição prenunciam-se classificações;
  • Distingue-se entre inventários abertos (em que há exemplos) e fechados (em que se apresenta lista exaustiva).

As definições apresentadas configuram uma consideração morfológica, ou, mais especificamente, morfossintática. A análise não se limita ao nível da palavra, desce ao exame dos elementos constitutivos vocabulares vai às relações intervocabulares, chegando à oração soluta. Acima de tudo, o que se encontra é a predominância do princípio da divisibilidade preconizada já pelos gregos.

É inegável o interesse histórico e social de João de Barros. Podemos, através dos exemplos que ele seleciona, perceber a estatura do homem renascentista da Península Ibérica: católico fervoroso, ainda que simpatizante de Erasmo; homem justo, ainda que preconceituoso contra negros e colonizados; ciente da afirmação de Portugal entre outras jovens nações europeias, ainda que preferisse recorrer à história antiga para dar exemplos do uso da língua portuguesa, ignorando “os barões doutos” portugueses.

IV – BIBLIOGRAFIA

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