Categoria: expansão-definição

ELEMENTOS DE TIPOLOGIA DO TEXTO DESCRITIVO

 

ELEMENTOS DE TIPOLOGIA DO TEXTO DESCRITIVO

NEIS, I. A. C. M. In: Fávero, L.L.& Paschoal, M.S.Z. Linguística Textual. Texto e Leitura, Série Cadernos PUC n. 22, São Paulo: EDUC, 1986.
(Adaptado por Nílvia Pantaleoni)

 

O ESTATUTO DA DESCRIÇÃO

A descrição é encontrada, tematizada, nos estilos romântico, clássico, neoclássico, realista e fantástico, também está presente em obras e trabalhos científicos, em dicionários e enciclopédias, em manuais técnicos, em propagandas, enfim, na grande variedade de textos consumidos diariamente. Descrevem-se tanto objetos reais quanto objetos ficcionais; tanto personagens quanto linguagens e conceitos. A descrição aparece, portanto, nas mais diversas modalidades e com as mais diversas funções.

O leitor facilmente distingue as passagens descritivas das passagens narrativas de um texto, embora o critério de distinção seja geralmente intuitivo e pouco consistente, baseado que está na ideia de que a descrição descreve coisas e a narração, atos. Na realidade, o estatuto da descrição é bastante impreciso. Às vezes, o descritivo é oposto ao normativo (ao crítico, ao prescritivo), O descritivo é visto, muitas vezes, como um “grau zero” geral, que facilita, por oposição, a discriminação de outros tipos textuais mais marcados, como o poético, o performativo, o psicológico, o explicativo, o normativo.

É possível conceber textos puramente descritivos, mas parece impossível produzir um texto narrativo sem elementos descritivos. A descrição parece, portanto, ser inseparável da narração. A onipresença de textos descritivos e o fato de o leitor distinguir – embora mais ou menos intuitivamente – passagens descritivas levam a crer que o falante, além de uma “competência textual narrativa”, possui uma “competência textual descritiva” que funciona tanto na produção quanto na recepção de textos.

 

CONCEITO BÁSICO DE DESCRIÇÃO

A coesão global do texto descritivo requer a conjunção de pelo menos dois actantes: o descritor e o descrito. O descritor pode ser manifesto, ou não, no texto. No caso de ser identificável, seu papel será assumido pelo narrador ou por outro elemento do texto (personagem, animal, objeto). Ele é a base determinante da seleção e da interpretação do que é descrito. O descrito, normalmente manifesto no texto, também pode ter várias representações: o leitor, uma personagem, um animal, um objeto, uma noção.

A descrição constitui um recorte no seu referente, e sua disposição lógica é uma “arborescência”. O objeto descrito tem, essencialmente, três ordens de grandezas: a situação, as qualidades e os elementos que podem integrar-se na descrição e que em geral constituem os elementos básicos desta.

Para uma conceituação mais precisa do processo descritivo, Adam&Petitjean recorrem à análise da definição lexicográfica, centrada em dois elementos, a denominação e a definição, partindo do conceito proposto por Hamon de que a descrição pode ser definida sumariamente como uma estrutura hierárquica que coloca em relação de equivalência uma denominação (condensação) e uma expansão (definição), sendo a própria expansão a colocação em equivalência de uma nomenclatura e de uma série de predicados. A denominação-condensação equivale ao objeto-tema da descrição; a expansão-definição deve ser entendida como uma nomenclatura de subtemas, aos quais se associam os diferentes predicados.

 

A COESÃO DO TEXTO DESCRITIVO

Um dos problemas fundamentais relativos à caracterização do texto descritivo consiste em identificar seus fatores de coesão, ou seja, os marcadores linguísticos da descrição e seu modo de funcionamento. Num texto narrativo, as passagens descritivas formam geralmente um todo mais ou menos autônomo, um bloco semântico, muitas vezes destacável. Aliás, é possível introduzir expansões descritivas em qualquer ponto da narração.

Para se compreender em que consiste a competência descritiva, parece útil opô-la à competência narrativa. A estrutura narrativa apela para uma competência de tipo lógico e previsível, pois uma narração pode ser considerada como uma série de transformações baseadas em funções hierarquizadas, implicando uma dimensão temporal e uma evolução orientada. Em outras palavras, na narração, o leitor espera conteúdos mais ou menos dedutíveis de uma estrutura lógico-semântica de transformações, até chegar a uma situação final. Deve-se ressaltar ainda que a estrutura profunda da narração – sistematizável e recorrente – é mais ou menos independente de sua manifestação superficial, visto que um mesmo esquema narrativo pode realizar-se, na superfície, por meios discursivos variados.

Já a descrição resiste mais a uma condensação esquemática ou a uma retranscrição discursiva. Aqui, o horizonte de expectativa parece centrado principalmente nas estruturas de superfície, lexicais e estilísticas, pois ela se realiza através de uma série de elementos ligados por inclusão ao objeto-tema, associados a predicados qualificativos e funcionais, implicando uma dimensão espacial e um estado de acronia.

Entretanto, afirmar que o sistema descritivo seria um desdobramento de uma lista armazenada na memória só em parte dá conta do funcionamento discursivo da descrição. Como a descrição não se apresenta, normalmente, como um simples inventário de nomenclaturas, constata-se que a coesão do texto descritivo resulta da convergência de vários recursos sintáticos e lexicais, isto é, de marcas morfológicas especiais. Entre esses marcadores da descrição, devem ser citados os seguintes:

  1. um léxico particular: uma certa nomenclatura de campos semânticos relacionados com o objeto-tema da descrição;
  2. o uso de articuladores (conjunções, advérbios, preposições) que se relacionam com a situação do objeto-tema e de suas partes no espaço;
  3. certas operações gramaticais e sintáticas, tais como o acúmulo de adjetivos e de orações adjetivas, a justaposição, a parataxe;
  4. um certo efeito de lista e de particularização, que produz um ritmo próprio à descrição (síncope, justaposição, etc.);
  5. o uso predominante de certos tempos verbais: o presente de comentário; o pretérito imperfeito descritivo, por oposição ao pretérito perfeito narrativo;
  6. o amplo emprego de figuras retóricas, tais como a metáfora, a metonímia, a sinédoque, a comparação.

A título de ilustração, discute-se a seguir o uso de tempos verbais. O pretérito imperfeito contém os traços de descrição, de índice e de função, ao passo que o pretérito perfeito contém os traços de narração e de agente. Essa oposição aspectual do pretérito perfeito e do pretérito imperfeito parece fundamentada, pois a narração está ligada a ações ou eventos considerados como processos e, por isso mesmo, ela ressalta o aspecto temporal e dramático da narrativa; a descrição, pelo contrário, – visto que se detém em objetos e seres considerados na sua simultaneidade e encara os próprios processos como espetáculos – tem o efeito de suspensão do curso do tempo e contribui para estender a narração no espaço.

Weinrich sustenta que o pretérito perfeito serve para o núcleo narrativo, para o primeiro plano da narrativa; o imperfeito, para o plano de fundo, o cenário. Por primeiro plano, o autor entende o porquê da história narrada, aquilo que acontece e que pode ser resumido; e por plano de fundo, o que por si só não teria interesse, mas ajuda o leitor a orientar-se através do mundo.

Segundo Adam&Petitjean, o imperfeito tem nitidamente valor descritivo e efeito de focalização, isto é, de comentário, de discurso no passado. Constata-se, de fato, que a maioria dos textos narrativos redigidos no passado tem no pretérito imperfeito o tempo fundamental da descrição e que a maioria dos textos não narrativos tem como tempo fundamental da descrição o presente de comentário, pois tais textos situam-se, geralmente, no mundo comentado.

 

PRINCÍPIOS DE ESTRUTURAÇÃO DO DESCRITIVO

As operações de seleção baseadas na situação de enunciação e na subjetividade do sujeito-enunciador e suas consequências na estruturação do texto descritivo decorrem de diversos princípios, que serão arrolados e desenvolvidos a seguir, com base, principalmente, no que se encontra exposto em Adam&Petitjean.

  • Não se percebe a totalidade daquilo que é perceptível.
  • Não se verbaliza a totalidade daquilo que se percebe.
  • Descreve-se de acordo com seus conhecimentos (linguísticos e extralinguísticos) e de acordo com os conhecimentos supostos do leitor.
  • A descrição deve sujeitar-se às regras da escrita.
  • A descrição depende do tipo de discursividade do texto que a engloba.
  • A descrição varia de acordo com os gêneros e possui sua própria história.

Este princípio enuncia dois fatos facilmente constatáveis. O primeiro é que a descrição ocupa um lugar menor em formas narrativas simples, como contos e fábulas, e um lugar que chega a ser relevante nos grandes gêneros, como é o caso de epopeias, romances realistas, histórias de ficção científica. O segundo fato é que, historicamente, várias tendências descritivas sucessivas exerceram grande, influência na literatura. Adam&Petitjean apresentam quatro tendências principais:

  1. A descrição ornamental: estabelecida há séculos, baseada no gosto e na preocupação com a pompa e o ornamento do estilo, esta tendência corresponde a uma expectativa fortemente institucionalizada, rejeitando efeitos realistas e fazendo predominar uma beleza idealizada, através de quadros, paisagens e cenas de características preestabelecidas;
  2. a descrição expressiva: surgiu na segunda metade do século XVIII e durante o século XIX, a partir de novos valores no campo da representação literária, entre os quais se destaca a consagração da imaginação contra a imitação, e a consequente criação de mundos pessoais a partir da teoria da analogia e das correspondências. Nas descrições, passam-se a multiplicar os enunciados expressivos, simbólicos, dando primazia, tanto na prosa quanto na poesia, ao processo metafórico, com o uso intensivo de figuras retóricas.
  3. a descrição representativa: nasce com os realistas que, inspirados pelo positivismo da época, pretendem que a objetividade, nos dois sentidos, de neutralidade e de precisão, é possível na medida em que “a verdade está nas coisas”. O realismo atribui à descrição duas funções principais: a primeira, que os autores denominam função matésica, permite ao escritor exibir seu saber acumulado em leituras e investigações mais ou menos exaustivas; a segunda, que chamam de função didascálica, possibilita à descrição estabelecer o autorreferente do texto, isto é, faz com que ela crie a situação espaço-temporal e o tipo de mundo no qual interagem as personagens, estas também criadas a partir da descrição.
  4. a descrição produtiva: em reação contra a descrição realista, a descrição assume uma função criativa, fazendo com que a própria descrição, praticada intensivamente, acabe por desenvolver os objetos ficcionais engendrados pela escritura.
  • A descrição depende do papel que desempenha na economia interna do texto.

Quanto ao papel que a descrição exerce na economia interna do texto narrativo, Hamon destaca cinco funções principais, assim caracterizadas:

a) Função demarcadora, que consiste em assinalar ou ressaltar as articulações da narrativa;

b) Função proteladora, constituindo-se num meio de retardar a ação;

c) Função decorativa, no sentido de provocar um efeito de real ou um efeito de poesia , segundo princípios estéticos e retóricos;

d) Função organizadora, que consiste em garantir o encadeamento lógico, a legibilidade e a previsibilidade da narração;

e) Função focalizadora, que contribui para o antropocentrismo da narração, revelando o ponto de vista do descritor a respeito do descrito.

 

Adam&Petitjean também citam um certo número de funções que a descrição possui dentro do texto narrativo:

a) Construir o cenário da narrativa;

b) Fazer o retrato de uma personagem;

c) Exprimir o ponto de vista de uma personagem;

e) Introduzir enunciados explicativos de ações anteriores;

f) Assumir as apreciações e os conhecimentos do autor;

g) Anunciar prospectivamente ações mais ou menos previsíveis;

h) Estabelecer as isotopias do contexto; etc.

Para ilustrar de que modo funciona essa integração entre as funções da descrição e da narração, os autores lembram que as descrições invadem muitas vezes os estados iniciais (constituídos de pequenos acontecimentos relatados no pretérito imperfeito) e, mais amplamente, o início e o fim de narrativas e o início e o fim de sequências. A descrição desempenha um papel demarcador importante, focalizando o texto em torno (do estado) de um lugar ou em torno (do estado) de uma personagem, para esboçar os acontecimentos que sobrevirão ou para encerrar uma ação que se desenrolou.

 

A DESCRIÇÃO EM DIFERENTES DISCURSOS

Abandonando o terreno da narrativa, sobretudo da narrativa literária, e abordando outros tipos textuais, constata-se que a descrição tem várias funções além daquelas já apontadas. Ela terá igualmente outras características, de acordo com o princípio que diz: A descrição depende do tipo de discursividade do texto que a engloba. Por um lado, a estrutura e o discurso da descrição dependem do tipo de texto em que ela está inserida. E esse tipo pode variar quase indefinidamente, da publicidade à receita, do estudo de geologia ao retrato falado, do guia turístico à tese científica, do manual de geografia ao manual de uso de uma máquina. Por outro lado, também a função da descrição varia de acordo com a finalidade enunciativa do texto que a engloba: demonstrar, constatar, orientar, instruir, persuadir, divertir, emocionar, ilustrar, etc.

Assim sendo, a descrição muitas vezes não tem mero caráter descritivo e referencial, mas pode ter um sentido pragmático-argumentativo, uma certa força ilocutória derivada dos códigos tecnológico e estético que estão sendo utilizados. Deve-se considerar também que, em alguns tipos de textos, a inserção da descrição constitui um recurso mais ou menos facultativo, opcional, como seria o caso de certos textos argumentativos, filosóficos, poéticos, ao passo que outros tipos textuais são fundamentalmente descritivos, quando não descritivos por definição, tais como a descrição de uma planta num manual de botânica, um guia turístico, um retrato falado.