Categoria: Retórica

RETÓRICA OU AÇÃO PELA LINGUAGEM” (baseado no texto de OSAKABE, H in Argumentação e Discurso Político, São Paulo, Kairós, 1979, p. 131/166).

RETÓRICA OU AÇÃO PELA LINGUAGEM”     (baseado no texto de OSAKABE, H  in Argumentação e Discurso Político, São Paulo, Kairós, 1979, p. 131/166).

Merece algumas observações o emprego que atualmente se dá ao termo “retórico”: O Ducrot trata, no enunciado, de dois componentes: o componente propriamente lingüístico e o componente retórico que é o conjunto de fatores que individualiza o sentido, descrito fora do componente lingüístico; M. Pêcheux apresenta como operadores retóricos os que não possuem uma natureza lógica, não sendo, portanto, passíveis de uma sistematização; já, para Grimes, existem as relações retóricas, que se opõem às relações lexicais (explicitação da maneira pela qual as palavras se colocam em relação entre si para formar uma proposição), enquanto que as retóricas possuem uma significação mais ampla, pelo fato de explicitarem a maneira pela qual as proposições se agrupam em contextos maiores. Nota-se que Ducrot, Pêcheux e Grimes consideram “retórico” o que ultrapassa certo nível que é o da “informação imediata”, referindo-se não ao domínio frasal, mas ao discurso, cujas finalidades e motivações, mesmo que possam ser classificadas, não poderiam jamais ser sistematizadas lingüisticamente em virtude de sua natureza complexa.

A razão desse consenso, bastante difundido entre os lingüistas, deve-se principalmente pelo distanciamento que os estudos lingüísticos, a partir de Saussure e, mais tarde, de Chomsky, estabeleceu em seu percurso do estudo dos discursos realizados. Apesar de suas divergências, tanto um quanto outro concordam em suas hipóteses sobre a linguagem, inscrevendo seu objeto no domínio da virtualidade do falar e não na virtualidade do dizer. Atualmente, a Lingüística da Enunciação parece ser a única perspectiva teórica capaz de encampar o discurso.

Retomando a Retórica a partir de Aristóteles, percebemos que ele a considera como uma “faculdade” de descobrir, especulativamente, em qualquer dado, o persuasivo. Ora, estes dados podem pertencer a qualquer campo do conhecimento humano, tendo a fala uma função reveladora desse conhecimento que se situa ao nível de cada ciência. Já, a fala, como é tratada na Retórica, é uma forma de ação específica de persuadir.

Três elementos distintos devem ser considerados quando se concebe a fala do orador como forma de ação: a) o orador (ethos); b) o ouvinte (pathos); e c) o próprio discurso (logos). Em relação ao orador, seu caráter é colocado em ação pela fala; ao ouvinte, sua disposição em relação à fala o conduz a provar uma paixão; ao discurso, seu tema, para que persuada, deve revelar o verdadeiro e o verossímil. O discurso de um orador é, pois, uma ação em direção ao ouvinte com a intenção de persuadi-lo e isso só se obtém à medida que o discurso tem um valor demonstrativo, revela o caráter do orador e   torna o ouvinte disponível à persuasão.

Aristóteles estabeleceu, para cada um dos três gêneros da Retórica, uma espécie de ouvinte: a) o ouvinte que se pronuncia sobre o talento do orador, elogiando-o ou criticando-o, é o ouvinte do gênero epidítico, cujo fim é o belo e o feio; b) o ouvinte, que julga o passado que o orador acusa ou defende, é o ouvinte do gênero judiciário, cujo fim é o justo e o injusto; e c) o ouvinte que se pronuncia sobre o futuro que o orador aconselha ou desaconselha, é o ouvinte do gênero deliberativo, cujo fim é o útil e o prejudicial.

Na base dos três gêneros está a demonstração cujo critério fundamental é ter provas que possam conduzir o ouvinte a concordar com a “verdade” das coisas de que fala o orador. O discurso é persuasivo por parecer demonstrado por razões persuasivas e dignas de crença.

As provas são o centro do pensamento aristotélico em Retórica. Elas estão estão na base de qualquer demonstração e classificam-se em técnicas e extratécnicas. As extratécnicas são estudadas rapidamente, por não dependerem do discurso do orador. São exemplos de provas extratécnicas as confissões, os escritos, as testemunhas.

De que forma as provas técnicas são utilizadas no discurso? Principalmente, através de duas formas de raciocínio: o exemplo que corresponde à indução, partindo, portanto, da experiência,isto é, de algum fato que se pressupõe conhecido pelo ouvinte ou de que se pode tirar proveito ou ensino; e o entimema que é chamado por Aristóteles de “silogismo retórico”. É importante observar que o entimema não apresenta sempre toda a estrutura do silogismo, já que utiliza muitas vezes de premissas que são evidentes, não precisando ser enunciadas. É o caso das máximas.Pelo fato de os entimemas serem mais flexíveis que os silogismos, eles não impõem o absoluto sobre o relativo mas revelam-se “razoáveis”, podendo conduzir o ouvinte à adesão.

As premissas específicas de um determinado campo do conhecimento (por exemplo, a Ciência Política) são denominadas espécies. As espécies não pertencem à Retórica ou à Dialética, elas são utilizadas pelo orador para fundamentar o seu discurso.

Ao lado das espécies temos os lugares que se definem como uma região de onde o orador vai retirar suas premissas, ou como as categorias que vão servir de meios para a argumentação. Os lugares gerais, para Aristóteles, são três: a) do possível e do impossível; b) do existente e do inexistente; e c) da amplificação e da depreciação. O orador vai construir suas premissas a partir das categorias, isto é, dos lugares “do mais e do menos”, “do possível e do impossível”; “do existente e do inexistente”,portanto, mais importante do que seu efetivo conhecimento do mundo é a capacidade de exercer o seu raciocínio.

Com o passar dos séculos, a excessiva preocupação com a forma vai transformar a Retórica apenas no estudo das figuras e no emprego de um estilo verboso e empolado que se deteriora de tal forma que, a partir do final da Idade Média foi relegada para segundo plano, ressurgindo apenas no século XX, no reestudo da Retórica aristotélica e na instauração de uma nova Retórica.

Na Nova Retórica, a importância dos estudos de Perelman deve-se principalmente ao fato de ele: recuperar da retórica aristotélica o gênero epidítico, marginalizado pelos romanos por sua não funcionalidade política, considerando-o o gênero por excelência; questionar a concepção temporal e o caráter atomista do conhecimento cartesiano que imperou por três séculos; propor uma teoria filosófica da argumentação, afirmando que, pelo fato de os objetos do conhecimento terem natureza complexa, eles exigem abordagem coerente com essa complexidade – o que importa para o conhecimento é os objetos tomados em suas contingências; reduzir a tipos básicos os lugares que passaram a ser divididos em lugares de quantidade e lugares de qualidade. Finalmente, Perelman recupera o prestígio do raciocínio verbal utilizado pela Retórica como fundamental para se conhecer o funcionamento da linguagem e dilata a extensão do campo dos estudos retóricos que passou a abranger toda manifestação discursiva que vise à adesão do ouvinte.

AS BASES DA RETÓRICA (baseado no texto de Michel Meyer: “As Bases da Retórica” in CARRILHO,M.M. (org.) Retórica e Comunicação, Porto, Asa, 1978, p. 31/70.)

AS BASES DA RETÓRICA (baseado no texto de Michel Meyer: “As Bases da Retórica”  in CARRILHO,M.M. (org.) Retórica e Comunicação, Porto, Asa, 1978, p. 31/70.)

Arte de bem falar, com objetivos múltiplos: persuadir, convencer, criar o assentimento; agradar, seduzir, justificar o seu ponto de vista a qualquer preço; sugerir o implícito pelo explícito; fazer passar como verdadeiro o que é apenas verossímil. A Retórica – que é amoral – é uma técnica que leva o auditório a mudar sua opinião sobre determinada questão, ou a reafirmá-la, se for o caso, sendo o orador convincente pelos gestos, pela voz, pela postura, pelo estilo, pela construção de silogismos retóricos. Não importa qual seja a questão (logos), o orador (ethos), através dos estratagemas, como os chama Schopenhauer, consegue a adesão do ouvinte (pathos).

Desse modo, os antigos gregos e,depois, os romanos consideravam a Retórica como uma disciplina obrigatória para a formação do cidadão, quer ele fosse um orador, quando se obrigava a dominar todos os meandros desta arte sinuosa, estudando como se construíam os entimemas – silogismos retóricos – através do levantamento de todos os lugares retóricos que constituíam a “munição” para a construção da argumentação de que lançava mão para fazer o seu discurso; quer como ouvinte, quando deveria estar preparado para reconhecer, na eloqüência de um discurso, o que era artimanha e estratagema que o orador falaciosamente poderia construir.

Normalmente, quando um retor preparava um discurso, ele percorria as seguintes etapas:a invenção que era a procura das razões verdadeiras ou verossímeis que sustentariam a causa; a elocução que era o momento de construção do discurso; a memória, quando grava fielmente os pensamentos adrede construídos; e, no momento do discurso, o modo de recitar, a observância do tom de voz, dos gestos, que deveriam se harmonizar com a linguagem e com o assunto que se debatia.

Passados tantos séculos, a retórica é tratada como uma relação que existe entre si e outrem, respectivamente, o “ethos” e o “pathos” de Aristóteles, através de uma linguagem “logos”  ou outro meio de comunicação (como os utilizados pela propaganda). Qual o elemento mais importante? Nesta tríade não se deve colocar ênfase no assunto (logos), no ouvinte (pathos) ou no orador (ethos). Michel Meyer afirma: “Com efeito, a retórica é o encontro entre os homens e a linguagem na exposição das suas diferenças e das suas identidades. Sempre e em todos os casos, a relação retórica consagra uma distância social, psicológica e intelectual, que é contingente e de ocasião, e que é estrutural ao manifestar-se, entre outras formas, através de argumentos ou da sedução.”

Dos três componentes apresentados, para Michel Meyer, o logos é, sem dúvida, o mais objetivo pois trata do referente do discurso que sempre se ocupa do “problemático”através de um questionamento (dialética). “Interrogar é levar a admitir uma proposição oposta mas igualmente provável confrontando-a com os argumentos do adversário, entre outros.”

Os três gêneros em que se divide a retórica existem separadamente? Quintiliano (séc. I da nossa era) afirma que os três gêneros: o demonstrativo, o deliberativo e o judiciário apóiam-se mutuamente: “Com efeito, não tratamos num elogio do que é justo e útil, não tocamos, numa deliberação, em questões de moral? E não existe sempre algo de tudo isto num discurso judicial?” Quando se enfatiza o pathos, temos a manipulação; o logos, temos uma visão lógica e argumentativa; o ethos, temos a preponderância do papel da “moral”, do sujeito do discurso. O que acontece, na realidade, é uma fusão do papel dos três elementos.

A retórica clássica não tratou especificamente da interrogatividade na argumentação. Podemos observar na estrutura interrogativa três possibilidades de questionamento: a factualização que se refere ao “o quê”, quando perguntamos se o fato em questão se produziu. Por exemplo: Pedro morreu;  outra possibilidade é a qualificação que se refere ao “o que é  este quê?, já existe um fato conhecido e questiona-se sobre ele. Por exemplo: Pedro foi assassinado ou sua morte foi acidental? A terceira possibilidade de interrogação refere-se ao “por quê?” -tratando de questões de legitimidade. Por exemplo: Quem interroga a respeito da morte de Pedro,tem este direito? Que razões ele vai invocar?

No primeiro tipo de interrogação, utiliza-se a argumentação dialética. O fato realmente aconteceu. Isto estabelecido, a resolução fornece o acordo e a adesão do ouvinte. No segundo tipo, a argumentação está ligada à qualificação do fato e quais são seus atributos. Interpretam-se os sentidos. Faz-se uso da hermenêutica e da pragmática. A resolução do questionamento já não é da ordem do acordo, mas da interpretação justa ou da credulidade voluntária. A reação é de ordem estética. No terceiro tipo, quando o metanível faz parte da argumentação, ela se faz transcendental, o que interessa nesse momento é o debate sobre os motivos morais e éticos. O objeto do debate é a identidade e a diferença entre os seres.

É difícil isolar estes três tipos de questionamento no interior de uma argumentação global. Pode-se estabelecer o seguinte, para fins didáticos:

1) Factualização“o quê?” – o problema debatido é a contradição; a resposta visada pelo argumento é a aprovação; e a natureza da resposta é o verídico.

2) Qualificação –  “o que é este quê?” – o problema debatido é o sentido, a interpretação; a resposta visada pelo argumento é a significação; e a natureza da resposta é o estético.

3) Legitimidade“o por quê?” – o problema debatido é a identidade e a diferença; a resposta visada pelo argumento é o reconhecimento, a norma e a conformidade com a norma; e a natureza da resposta é o ético e o político.

Finalmente, segundo Roland Barthes, quando se coloca em evidência a interrogatividade, podemos contrapor dois usos da retórica: A retórica negra que visa manipular os espíritos e a retórica branca que revela os processos da primeira, evidenciando todos os mecanismos de sedução, de inferências não lógicas, empregados pela retórica negra.

SÍNTESE DA RETÓRICA ARISTOTÉLICA

SÍNTESE DA RETÓRICA ARISTOTÉLICA

 

GÓRGIAS  (487 – 380 a.C.)

ISÓCRATES (436 – 338 a.C.)

ANAXÍMENES DE LÂMPSACO (380 – 320 a.C.)

XENOFONTE (430  –  355a.C.)   e GRYLLOS (morreu em 362 a.C.)

SÓCRATES (470  –  399 a.C.)

PLATÃO (427  –  348 a.C.)

ARISTÓTELES (384  –  322 a.C.)

QUINTILIANO (30  –  100)

Sócrates considerava a Retórica como uma busca filosófica.

Górgias considerava a Retórica como a arte da persuasão; técnica da simetria e da antítese; assentada numa força irracional; emprego da psicagogia que é a arte da sedução. (Psicagogia, entre os gregos antigos, era uma cerimônia religiosa de invocação da alma dos mortos).

Isócrates foi discípulo de Górgias e de Socrates e adversário de Platão. Retórica = Filosofia; síntese da arte da persuasão e do viver social; método de educação racional cujo objetivo era tornar os homens bons e sábios. A palavra produz sabedoria e é um dom divino.

Anaxímenes escreveu a Retórica de Alessandrum (atribuída por muito tempo a Aristóteles). Estabelece 7 espécies: aconselhar e desaconselhar (gênero deliberativo); louvar e vituperar (gênero demonstrativo); acusar, defender e investigar (gênero judiciário). Estas espécies foram retomadas por Aristóteles.

Aristóteles escreveu, em sua juventude, “Gryllos” (argumentando contra a eloquência empregada pelos oradores nos elogios fúnebres a Gryllos). Nos três livros que escreveu posteriormente, há uma nítida distinção entre a retórica antiga (Livro I) e a retórica recente (Livros II e III).

Retórica antiga: arte apodítica, ênfase a uma técnica rigorosa, mas que não deve confundir-se com a dialética que emprega silogismos;  arte de argumentar; arte da demonstração; emprego de entimemas (silogismos refutáveis).

Retórica recente: arte não apodítica; silogística; introduz as paixões; retoma a psicagogia; não é mais uma discíplina pura; introduz a dídaxis (lição regular); centraliza-se no ethos e no pathos; arte da demonstração e da sedução.

PROVÉRBIOS FRANCESES E PORTUGUESES: LAÇOS CULTURAIS DE LONGA DATA

Provérbios Franceses e Portugueses: laços culturais de longa data

 (Palestra proferida na PUC-SP em 2009)

INTRODUÇÃO

Agradeço a oportunidade oferecida pelas minhas amigas, as professoras Mára e Jelssa, para, de alguma forma, contribuir com vocês que encontraram um jeito especial de passar os sábados. Até fevereiro deste ano, éramos colegas da Comfil, da Puc. Deixamos de ser colegas de instituição, o que não as impediu de me fazerem o convite prontamente aceito. É, pois, um genuíno prazer compartilhar os primeiros resultados de uma pesquisa ainda incipiente sobre provérbios.

A ampliação do universo cultural que se obtém em cursos como estes, além dos conhecimentos específicos – é claro – é um bem que tende sempre a crescer. A curiosidade intelectual, para mim, é uma competência ou habilidade (ou ambas, já que estão intimamente ligadas) que nos impulsionam vida afora a aprender sempre mais a respeito do que está dentro de nós, do que nos rodeia e, em círculos cada vez maiores, nos impulsionam a alargar fronteiras que extrapolam os limites de nosso mundo. No entanto, muitas vezes ignoramos o que faz parte do nosso cotidiano. Sirvam de exemplo, as coisas simples que se revelam pequenas jóias que usamos sem perceber. Pedras preciosas que foram lapidadas durante muitas gerações, durante muitos séculos e que nos pertencem por direito de herança. Apesar de seu emprego diário, não atentamos para seu valor que se renova a cada uso.  Falo dos provérbios. Gosto de colecioná-los, gosto de usá-los, gosto de ouvi-los. Somado a isso, o respeito e a admiração que sempre nutri pela língua francesa e, consequentemente, pela sua cultura, acho perfeitamente natural tratar dos provérbios franceses e portugueses que considero – mudando a metáfora – fitas coloridas que atestam laços culturais de longa data entre as duas línguas e as duas culturas.

A coincidência das comemorações do ano da França no Brasil autoriza minha pretensão e viabiliza minha fala, em português, evidentemente. É justo, pois, que eu queira prestar homenagens ao camponês francês e ao seu vizinho, o camponês português. De antemão, peço desculpas pelos deslizes de pronúncia ao apresentar exemplos de provérbios franceses,  mas, acredito que não esteja aqui em jogo minha proficiência na língua – pois não a tenho – mas minha vontade de compartilhar, como já disse, no início, os resultados parciais de minha pesquisa.

Procurando seguir o espírito cartesiano, minha fala divide-se em três partes e procurarei me limitar a elas:

Primeira parte: conceitos retóricos que correspondem à perspectiva teórica que adoto na pesquisa;

Segunda parte: apresentação do corpus;

Terceira parte: aplicação dos conceitos a exemplos de provérbios.

PRIMEIRA PARTE: conceitos retóricos que correspondem à perspectiva teórica

Apresento brevemente, nesta parte, os conceitos básicos da retórica aristotélica, retomados, a partir da segunda metade do século XX, por estudiosos da linguagem, voltados para a análise do discurso. Uma das vertentes – a que me interessa aqui – é a que trata da atualização e da revalorização da retórica antiga e que pode ser denominada, de acordo com os autores Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, de nova retórica.

De acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca, daqui em diante, para facilitar “Perelman”, na obra TRATADO DA ARGUMENTAÇÃO: A NOVA RETÓRICA, um dos pontos de partida da argumentação – ao lado dos fatos, das verdades e das presunções – são os os valores, as hierarquias e os lugares do preferível.  Todos os elementos citados: fatos, verdades e presunções, além dos valores, das hierarquias e dos lugares do preferível são objetos de acordo para se estabelecer a adesão do auditório às teses que são oferecidas a seu assentimento.

Existem vários tipos de auditório. O nosso, por exemplo, é um auditório particular, de especialistas. Por isso, meu discurso, ou seja, minha fala apresenta características distintas da fala dirigida a um auditório íntimo ou da fala dirigida ao auditório universal.

Para, Aristóteles, a arte retórica trata do estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses apresentadas ao seu assentimento. Séculos mais tarde, é ainda assim que a arte retórica é considerada.

Retórica é a arte de bem falar, com objetivos múltiplos: persuadir, convencer, criar o assentimento; agradar, seduzir, justificar o seu ponto de vista a qualquer preço; sugerir o implícito pelo explícito; fazer passar como verdadeiro o que é apenas verossímil.

Três elementos distintos devem ser considerados quando se concebe a fala do orador como forma de ação: o oradoro ouvinte e o próprio discurso. O discurso é a ação em direção ao ouvinte com a intenção de persuadi-lo e isso só se obtém à medida que o discurso (logos) tem um valor demonstrativo, revela o caráter do orador (ethos) e torna o ouvinte (pathos) disponível à persuasão.

Os objetos de acordo: hierarquização dos valores e os lugares

Nem só de oratória vive a retórica. Ela trata da própria argumentatividade que caracteriza grande parte das interações verbais. Numa argumentação, no jogo que aí se instaura de “argumentar e contra-argumentar”,  sustentamo-nos em valores que desejamos submeter ao nosso interlocutor que, por sua vez, também se sustenta em seus próprios valores. Quando os valores são compartilhados é fácil se chegar a um acordo.

Existem valores universais e valores particulares. Os valores universais são utilizáveis perante todos os auditórios: os valores particulares sempre podem ser vinculados aos valores universais e podem servir para especificá-los. O auditório real poderá considerar-se tanto mais próximo de um auditório universal quanto mais o valor particular parecer apagar-se ante o valor universal por ele determinado. É, portanto, na medida em que são vagos que esses valores se apresentam como universais e pretendem um estatuto semelhante ao dos fatos.

A argumentação se sustenta não só nos valores, abstratos e concretos, mas também em sua hierarquização. Um exemplo de hierarquia é a superioridade dos homens sobre os animais; a superioridade dos seres vivos, por sua própria natureza, sobre as coisas.

As hierarquias admitidas se apresentam praticamente sob dois aspectos característicos: ao lado das hierarquias concretas, como a que expressa a superioridade dos homens sobre os animais, há hierarquias abstratas, como a que expressa a superioridade do justo sobre o útil.

Nesse sentido, as hierarquias de valores são mais importantes do ponto de vista da estrutura de uma argumentação do que os próprios valores. Na verdade, a maior parte dos valores são comuns a um grande número de auditórios. O que caracteriza cada auditório são menos os valores que admite do que o modo como os hierarquiza. Tomemos como exemplo um auditório que valoriza a riqueza, a beleza e o poder, três valores, portanto. Para a tese para a qual o orador procura o assentimento do auditório – o mercado de ações é vantajoso, já existe um objeto de acordo, pois o orador também comunga desses valores (riqueza, beleza e poder). Existe, então, o que chamamos de adesão inicial. Supondo que eu, oradora, seja a vendedora de ações –  para defender minha tese vou hierarquizar a riqueza, argumentando que “primeiro é preciso ser rico (que se consegue  aplicando o  dinheiro em ações)” e que os outros valores podem ser adquiridos em consequência do valor hierarquizado. E por aí vai. O que importa, neste caso, é que o orador quer que seu auditório hierarquize o dinheiro, então toda sua argumentação será baseada nisso.

Isso significa que os valores, mesmo se admitidos por muitos auditórios particulares, o são com maior ou menor força. A intensidade da adesão a um valor, em comparação com a intensidade com a qual se adere a outro, determina entre esses valores uma hierarquia que se deve levar em conta.

Quando se trata de fundamentar valores ou hierarquias, ou de reforçar a intensidade da adesão que eles suscitam, podemos relacioná-los com outros valores ou com outras hierarquias, para consolidá-los, mas pode-se também recorrer a premissas de ordem muito geral: os lugares.

O que é um lugar retórico?

Para os antigos, os lugares designam rubricas nas quais se podem classificar os argumentos. Tratava-se de agrupar o material necessário a fim de encontrá-lo com mais facilidade, em caso de precisão; daí a definição dos lugares como depósitos de argumentos. Aristóteles distinguia os lugares-comuns, que podem servir indiferentemente em qualquer ciência e não dependem de nenhuma, e os lugares especificos, que são próprios, quer de uma ciência particular, quer de um gênero oratório bem definido. Os lugares-comuns, portanto, se caracterizavam, primitivamente, por sua imensa generalidade, que os tornava utilizáveis em todas as circunstâncias.

Perelman conclui que os lugares-comuns de nossos dias se caracterizam por uma banalidade que não exclui de modo algum a especificidade. Tais lugares-comuns não são, a bem dizer, senão uma aplicação dos lugares-comuns, no sentido aristotélico, a temas particulares. Ele continua: mas, como essa aplicação é feita a um tema tratado com frequência, que se desenvolve numa certa ordem, com conexões previstas entre lugares, agora só se pensa em sua banalidade, ignorando-lhes o valor argumentativo. Isso a tal ponto, que se tende a esquecer que os lugares formam um arsenal indispensável, do qual, de um modo ou de outro, quem quer persuadir outrem deverá lançar mão.

Os lugares mais comuns, que Perelman denomina de lugares do preferível (justamente, por justificarem uma determinada hierarquização de valores) São os da quantidade, da qualidade, da ordem, do existente, da essência, da pessoa.

1. Os lugares da quantidade afirmam que alguma coisa é melhor do que outra por razões quantitativas.

2. Os lugares da qualidade aparecem na argumentação quando se contesta a virtude do número.

3. Os lugares da ordem afirmam a superioridade do anterior sobre o posterior, ora da causa, dos princípios, ora do fim ou do objetivo.

4. Os lugares do existente afirmam a superioridade do que existe, do que é atual, do que é real, sobre o possível, o eventual ou o impossível.

5. O lugar da essência refere-se ao fato de conceder um valor superior aos indivíduos enquanto representantes bem caracterizados dessa essência.  A moral do super-homem extrai do lugar da essência todo o seu atrativo e todo o seu prestígio.

6. O lugar da pessoa vincula-se à sua dignidade, ao seu mérito, à sua autonomia.

São estes, basicamente, os conceitos que emprego para o estudo inicial dos provérbios.

Vou confessar uma coisa a vocês: houve um tempo em que eu não gostava de estudar teorias, pois me considerava muito observadora e muito prática. Ainda bem que houve um momento em que “caiu a ficha” quando percebi que o simples empirismo não é suficiente para se fazer pesquisa. Com o passar do tempo, fui sentindo prazer pelas teorias e um prazer maior ainda ao perceber que as categorias que elas geram ou que elas possibilitam são essenciais para o entendimento dos fenômenos que estudamos.

Mesmo no caso dos provérbios!

SEGUNDA PARTE: apresentação do corpus

corpus é constituído por provérbios franceses e seus equivalentes portugueses. Foram retirados do Dicionário de Provérbios (francês/português/inglês) da Editora Unesp, organizado por Roberto Cortes de Lacerda, Helena da Rosa Cortes de Lacerda e Estela dos Santos Abreu. A edição de meu exemplar é de 2004.  Saliento que os provérbios franceses foram definidos por Didier Lamaison.

Na advertência da segunda edição, revista e ampliada, que é a que tenho em mãos, são quantificados mais de 3.800 provérbios franceses, com mais de 6.000 correspondentes em português e quase 4.500 provérbios ingleses.

Na verdade, o corpus selecionado para a pequisa nada mais é que uma pequena amostra do dicionário, pois analiso, aproximadamente setenta provérbios franceses e seus similares (outros setenta portugueses).

Diante de tamanha riqueza, meu primeiro problema foi definir o recorte que deveria ser feito. Optei por analisar os provérbios que apresentassem animais. Ou seja, optei pela fauna. Não distingui animais domésticos de animais selvagens, bastava ser “animal” para entrar na minha lista. Parti dos provérbios franceses para chegar aos portugueses. A seguir, fiz mais uma redução, desta vez, tendo como critério o espaço geográfico. Eliminei, então, muitos provérbios, extremamente interessantes por sinal, por serem provenientes da ilha da Martinica, do mar do Caribe, de colonização francesa. A preferência foi pelos provérbios europeus, tanto os de língua francesa quanto os de língua portuguesa. Cheguei, então, aos aproximadamente cento e quarenta provérbios, cuja lista passo a vocês para que possam acompanhar melhor meus comentários e para que possam também participar mais ativamente. Como já disse, trata-se de uma pesquisa em andamento. Por isso, repito, fico feliz pela oportunidade de trocar idéias com vocês.

Da nossa lista constam animais alados, animais terrestres e animais aquáticos. Cada um objeto de observação profunda por parte da população campesina que criou a maioria dos provérbios.

É preciso salientar que muitos remontam aos gregos e aos romanos, foram retomados na Idade Média e adentraram a Época Moderna sem perderem seu frescor e sua argúcia. São eles os famosos lugares retóricos usados na argumentação das situações comunicativas cotidianas até hoje. São os lugares do preferível de que fala Perelman e que se sustentam na hierarquização de valores.

Antes da análise propriamente dita, destaco alguns provérbios que especialmente me chamaram a atenção.

A) Os mais belos para mim são os que apresentam como referentes aves. Destaco três:

1. Le cygne plus il vieillit, plus il embellit. (sXVII). quem diria: a valorização da velhice!

2. aigle seul a le droit de fixer le soleil.

3. Même quand l´oiseau marche on sent qu´il a des ailes. (sXVIII)

Em português, o único que tem correspondência direta é o da águia: “Apenas a águia pode olhar o sol.” Existe um aproximado sobre o pássaro que anda, em português, mas sem a beleza da versão francesa: “Passarinho cai de voar, mas bate suas asinhas no chão.”

O do cisne, tão poético em sua primeira parte, continua bem mais prosaico, bem mais campônio: “Le cygne plus il vieillit, plus il embellit; le chien, auquel vieillissant, le membre grossit; le cheval et le cerf, que plus vieillisent, plus le font.

B) Os mais curiosos são os meteorológicos (que tratam da relação dos animais com o tempo). Destaco dois:

1. Les abeilles, en juillet, ne valent grain de millet./ Enxame de março, apanha-o no regaço; o de abril, não o deixes ir; o de maio, deixa-o.

Este por desconhecer completamente que a qualidade das abelhas estava relacionada com a temperatura,  e que com a aproximação do verão, elas perdiam seu valor.

2. Si la loutre voit son ombre le jour de la Chandeleur, elle rentre dans son trou pour quarante jours.

(No dia da Chandeleur celebra-se a Apresentação de Jesus no Templo.)

O da lontra, pela descoberta que este provérbio sobre o tempo tem seu correpondente na América do Norte. E quem vai negar que cinema americano também é cultura? Lembram-se do filme estrelado pelo Billy Murray, no começo dos anos 90? Isso mesmo o Feitiço do Tempo.

(A lontra é da família da marmota. O Dia da marmota é uma festa tradicional nos Estados Unidos da América e no Canadá, que se celebra no dia 2 de Fevereiro. Segundo tradição, as pessoas devem observar uma toca de Marmota monax, se o animal sair da toca por estar nublado, isso significa que o inverno terminará mais cedo, porém, se pelo contrário, o sol estiver brilhando e o animal se assustar com a sua sombra e voltar para a toca, então o inverno durará mais seis semanas.)

C) Os mais antigos. Destaco também dois:

  1. Noire géline pond oeuf blanc. Trata-se de um provérbio medieval em que encontramos a forma arcaica de pouleGéline tem origem em gallina (latim) que deu nossa “galinha”.
  2. La mouche va si souvent au lait qu´elle y demeure.  Que pode ser relacionada à fábula grega de Esopo que vale a pena contar:

      Uma mosca caiu numa panela de carne. Afogada no molho e já quase morrendo, ela disse para si mesma: “se já comi, já bebi e já tomei um banho, que me importa morrer?”

Suportamos a morte com mais facilidade quando a ela não associamos pensamentos tristes.

D) O emprego inusitado dos provérbios. Destaco o que me chamou a atenção:

Tout est bon dans le cochon. Usado por Umberto Eco na obra tão consultada “Como fazer uma tese”. Ele faz uma analogia entre uma tese e o porco. Uma tese é como o porco, dela tudo se aproveita.

TERCEIRA PARTE: aplicação dos conceitos a exemplos de provérbios.

Recordando a teoria, os provérbios são os lugares do preferível empregados em diversos discursos (falas) em situações comunicativas cotidianas. São tipos de argumentos bseados na estrutura do real, ou seja, os provérbios são criações coletivas provenientes da observação da realidade. Como nosso corpus se restringe ao comportamento de animais, eliminamos o lugar da pessoa. Ficamos, portanto com cinco lugares: da quantidade, da qualidade, da ordem, do existente e da essência.

Quantidade: alguma coisa é melhor do que outra por razões quantitat

Qualidade: quando se contesta a virtude do número

Ordem: a superioridade do anterior sobre o posterior, ora da causa, dos princípios, ora do fim ou do objetivo

Existente; a superioridade do que existe, do que é atual, do que é real, sobre o possível, o eventual ou o impossível

Essência; valor superior aos indivíduos enquanto representantes bem caracterizados dessa essência

Na verdade, os lugares de nada serviriam se não estivessem a serviço da hierarquização de valores.

Os valores encontrados no corpus geralmente se apresentam em oposição ao seu oposto. Esta oposição é clara (quando os dois competem no provérbio) ou fica subentendida (quando apenas um dos valores aparece).

Exemplo de provérbio com valores antitéticos figurativizados:

(INQUIETAÇÃO/AVIDEZ/COBIÇA X TRANQUILIDADE/DESAMBIÇÃO/DESAPEGO)

Mais vale um pássaro na mão do que dois voando.

Exemplo de provérbio com um valor figurativizado:

(EXPERIÊNCIA/CONHECIMENTO)

Galinha velha é que dá bom caldo.

EXEMPLOS DE VALORES

(CORAGEM/OUSADIA)

Apenas a águia pode olhar o sol.

(INEXPERIÊNCIA/INGENUIDADE)

Ovelha que berra, bocado que perde.

(IMPREVIDÊNCIA)

Infeliz do rato que só conhece um buraco.

OS LUGARES PREFERIDOS PARA A HIERARQUIZAÇÃO DOS VALORES

1. LUGAR DA QUANTIDADE

  • Do porco tudo se aproveita.
  • Mais vale um pássaro na mão do que dois voando.
  • Dois pardais na mesma espiga nunca fazem liga.

2. LUGAR DA ESSÊNCIA

  • Aos peixes não se ensina a nadar.
  • Galinha tem de toda cor, mas todo ovo é branco.

3. LUGAR DO EXISTENTE

  • A cavalo dado não se olham os dentes.
  • À falta de capão, cebola e pão.

4. LUGAR DA ORDEM

  • A cada bacorinho vem o seu São Martinho.
  • Burro e carroceiro nunca estão de acordo.
  • Depois de peixe, mal é o leite.
  • Galinha velha é que dá bom caldo.
  • Morto o bicho, acaba a peçonha.

5. LUGAR DA QUALIDADE

  • A burra velha, cilha nova.
  • Cavalo formoso de potro sarnoso.

Considerações provisórias

A base de criação de todos os provérbios é empírica. O grande lugar o macrolugar é o lugar do existente: a sábia observação do que é empírico.

Todos os provérbios, frutos da observação de gerações e gerações de camponeses, constituem-se em lugares onde se hierarquizam diferentes valores que sustentam suas crenças.  Podemos concluir que a partir do lugar do existente (da observação do comportamento animal e do comportamento do homem em relação aos animais) foram criados todos os provérbios.

Consideramos também que a visão de mundo dessas gerações tão ligadas à natureza tira de sua observação um outro lugar: o lugar da ordem. Nesse sentido, todos os provérbios meteorológicos enquandram-se na ordem. Da mesma forma, quase todos os provérbios pesquisados podem se enquadrar na ordem. É como se a ordem presente na natureza fosse transportada para a ordem que se precisa estabelecer na vida dos homens. Sábia lição aprendida pelos simples. O valor da aceitação, da simplicidade, da naturalidade é preferível ao valor da ambição, do artificialismo e da sofisticação.

Sábias lições!