Categoria: enredo

O TEXTO NARRATIVO REIS, C. LOPES, A. C. M. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Almedina, 2000. Adaptado por Nílvia Pantaleoni

O TEXTO NARRATIVO

REIS, C. LOPES, A. C. M. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Almedina, 2000.

Adaptado por Nílvia Pantaleoni

INTRODUÇÃO       O aprimoramento das competências – linguística, textual, comunicativa, entre outras – que comprovadamente o ser humano tem é essencial para as atividades que são propostas neste semestre. Mais do que aprender nomes e relacioná-los a conceitos o que se pede é que se ponha em prática o que já se sabe e o que se descobre a partir de leituras, discussões e reflexões. É fácil? Certamente que não, contudo o resultado é compensador. Estamos estudando o processo, estamos também sendo agentes desse processo e, no final, teremos o produto: o texto narrativo-descritivo individual.

Alguns conceitos básicos a respeito do texto narrativo serão aqui abordados. Eles servem para situá-lo tanto como leitor crítico quanto como autor consciente das estratégias que já possui pelo fato de viver em uma comunidade sócio-linguística-cultural inserida num determinado tempo e num espaço também determinado. Estudaremos os seguintes conceitos: competência narrativa; macroestrutura textual e os conceitos relacionados à macroestrutura – superestrutura e microestrutura; ação e história; autor e narrador; focalização; narração; tempo da narração; espaço e personagem.

COMPETÊNCIA NARRATIVA      A noção de competência narrativa surge como extensão teórica da noção de competência linguística formulada por Chomsky. Para ele, competência linguística significa o conhecimento que o falante/ouvinte possui da sua língua, conhecimento intuitivo representável sob forma de um conjunto finito de regras interiorizadas que, a partir de um número finito de elementos, geram (enumeram explicitamente) um número indefinido de frases.

Esta noção sofreu uma primeira extensão no âmbito da linguística textual. De fato, se consideramos que o signo linguístico originário é o texto e não a frase, é então possível falar-se de uma competência textual, entendida como um conjunto de regras interiorizadas que permitem ao falante/ouvinte produzir e compreender uma infinidade de textos. A competência textual transcende a competência linguística, na medida em que inclui regras translinguísticas (por exemplo, de ordem comunicativo-pragmática, ligadas à interação social). Neste sentido, a competência narrativa é um componente da competência textual que é mais ampla.

A proposta teórica da competência narrativa pode ser empiricamente validada. Várias pesquisas realizadas apontam para a existência de um esquema narrativo comum que preside à produção de textos narrativos no seio de uma mesma comunidade. Por outro lado, experiências levadas a cabo sobre os mecanismos de memorização, reprodução e resumo de textos narrativos corroboram a hipótese de que há, de fato, um esquema interiorizado, uma espécie de grade de expectativa vazia que vai sendo preenchida à medida que se processa a leitura ou audição de textos narrativos concretos. Estes esquemas narrativos globais, denominados superestruturas, são convencionais: incluem um certo número de categorias e de regras culturalmente adquiridos pelos membros de uma comunidade.

MACROESTRUTURA TEXTUAL         O nível mais profundo da estrutura textual organiza-se de modo não linguístico e corresponde a um esquema global composto por um conjunto de categorias hierarquicamente organizadas que se combinam mediante certas regras. Cada tipo de texto obedece a esquemas específicos de articulação sintática global, isto é, cada tipo de texto é sustentado por uma superestrutura. No caso específico da superestrutura narrativa ou do esquema narrativo, subjaz uma organização que comporta três categorias fundamentais: exposição, complicação e resolução.

Já a macroestrutura de um texto é uma representação abstrata da estrutura global de significado de um texto e possui natureza linguística. É nesse nível que se coloca o problema da coerência global do texto. Trata-se, pois, de uma noção que define em termos teóricos o sentido global do texto intuitivamente apreendido.

A totalidade de significação formalmente contida na macroestrutura resulta da integração sucessiva das representações semânticas parciais que correspondem às frases linearmente ordenadas do texto. É possível reconhecer níveis intermediários de macroestruturas, uma vez que num texto há conjuntos de frases que formam um bloco consistente, dando origem a sequências que funcionam como partes interligadas de um todo a que se vinculam: esse todo é a macroestrutura mais geral do texto, responsável pela projeção e articulação linear das frases que integram a superfície textual. Por outras palavras, a macroestrutura que contém a informação essencial do texto é comparável a um núcleo semântico a partir do qual, mediante a aplicação de certas regras de projeção, tem origem o conjunto de frases que perfazem a superfície textual, e às quais se dá o nome de microestruturas textuais. A microestrutura textual é, pois, o conjunto formado pelas frases que integram a superfície textual linear. Sendo a noção de macroestrutura de ordem semântica, ela vai ser traduzida em termos de proposições. Essas proposições também chamadas macroproposições – resultam da redução/condensação das representações semânticas agregadas a cada frase da superfície textual. Há um certo número de regras que reduzem e integram a um nível superior de representação a informação semântica do texto. São regras que suprimem tudo o que é acidental e supérfluo e definem o que é fundamental no conteúdo do texto considerado como um todo. Ao serem acionadas, selecionam, generalizam e integram numa representação hiperonímica os significados locais das microestruturas. Por exemplo: “Fui à estação”; “comprei um bilhete”; “dirigi-me à plataforma”; “subi no trem”: esta sequência de frases pode ser representada a um nível superior pela proposição “Fiz uma viagem de trem”, depois de aplicadas as regras de redução da informação semântica. Experiências realizadas na área da psicologia cognitiva mostraram que as informações armazenadas na memória correspondem a macroproposições com valor estrutural que traduzem o conteúdo global do texto.

Todos os modelos narratológicos se construíram tendo em vista a exploração das macroestruturas do texto narrativo. Formalizar a sintaxe narrativa ou explicitar a lógica narrativa é tentar articular em determinadas categorias o conteúdo global do texto, a sua macroestrutura. A macroestrutura de um texto narrativo preserva as características do modo narrativo: assim, comporta sempre uma macroproposição (exposição – situação inicial) que identifica o agente principal e descreve o estado inicial, um conjunto de macroproposições que traduzem um processo dinâmico (complicação – ações – resolução), e uma macroproposição (situação final) que representa o estado final.

AÇÃO      Basicamente, na narrativa tradicional, a ação é construída em função de uma procura e da resolução de certos problemas. Parte-se do princípio de que todo problema deve ser resolvido, que as coisas devem chegar de qualquer modo a uma solução. Como componente fundamental da estrutura da narrativa, a ação integra-se no domínio da história e remete a diversos outros conceitos que com ela se relacionam de forma mais ou menos estreita: a intriga, o tempo, a composição da história. Ela deve ser entendida como um processo de desenvolvimento de eventos singulares, podendo conduzir ou não a um desenlace irreversível.

Para sua concretização, a ação depende da interação de, pelo menos, três componentes: um (ou mais) sujeito(s) diversamente empenhado(s) na ação, um tempo determinado em que ela se desenrola e as transformações evidenciadas pela passagem de certos estados a outros estados.

Para a semiótica narrativa, a ação – fazer convertido em processo – é um programa narrativo «vestido», estando nela o sujeito representado por um ator – o actante – elemento proeminente, entidade virtualmente disponível para o preenchimento actorial da ação.

Entendida como totalidade que estrutura e confere consistência ao relato, a ação manifesta-se de forma peculiar nos diversos gêneros narrativos, propiciando análises diversas. Se no conto encontramos em princípio uma ação singular e concentrada, no romance é possível observar o desenrolar paralelo de várias ações, enquanto a novela é construída muitas vezes a partir da concatenação de várias ações individualizadas e protagonizadas pela mesma personagem, ou ainda, pelo mesmo motivo repetido em sequências de ações concatenadas.

A diversidade de dimensões que caracteriza a ação em cada gênero reveste-se de particular acuidade quando está em causa a “descrição de ações”. De acordo com diferentes critérios de ponderação (distribuição hierárquica das ações, grau de pormenorização, ordenação), a narrativa privilegia a economia e tratamento das ações em função da sua configuração estrutural: se um romance policial pode exigir uma representação pontual e minuciosa das ações, já um romance psicológico, muitas vezes regido por um narrador, tenderá a subalternizar a componente factual e objetiva das ações; e numa narrativa de narrador onisciente a grande desenvoltura que caracteriza um tal narrador permite-lhe eliminar certas ações, proceder a eventuais reordenações, aprofundar o seu desenvolvimento, estabelecer conexões hierárquicas entre várias elas. Seja como for, é impossível que a narrativa contemple todas as ações, ao receptor cabe normalmente uma função supletiva, pela ativação de mecanismos de inferência que lhe permitam preencher os vazios de ações omitidas e não perder de vista a coerência da narrativa.

 Além disso e num plano de ponderação macroscópico, a ação pode ser literariamente utilizada para insinuar sentidos tocados por evidentes ressonâncias histórico-ideológicas: é o que se verifica, por exemplo, com a ação do romance histórico, apoiada no pano de fundo da História incorporada na ficção, com a ação de um romance neo-realista, sugerindo o devir dialético de eventos de coloração social, etc.

HISTÓRIA     A história corresponde à realidade evocada pelo texto narrativo (acontecimentos e personagens), ela é o modo como o narrador dá a conhecer ao leitor essa realidade. Uma história pode apresentar um mundo possível cuja lógica pode não coincidir com a do mundo real. O mundo possível tem uma existência meramente textual. Cada texto narrativo ficcional apresenta-nos um mundo com indivíduos e propriedades e constrói o seu próprio domínio de referência.

É possível estabelecer uma distinção entre história (ou diegese), sucessão de acontecimentos reais ou fictícios que constituem o significado ou conteúdo narrativo; narração, ato produtivo do narrador, e narrativa propriamente dita (récit), discurso ou texto narrativo em que se plasma a história e que equivale ao produto do ato de narração. É possível também estabelecer a dicotomia história vs. discurso, identificando o nível da história com o conteúdo (conjunto de eventos, personagens e cenários representados) e o nível do discurso com os meios de expressão que veiculam e plasmam esse conteúdo. O primeiro nível compreende a sequência de ações, as relações entre personagens, a localização dos eventos num determinado contexto espacial; o segundo é o discurso narrativo propriamente dito, suscetível de ser manifestado através de substâncias diversas (linguagem verbal, imagens, gestos, etc.).

Esta dicotomia deve ser encarada como mero instrumento operatório que elucida alguns aspectos essenciais da composição de qualquer texto narrativo. De fato, é possível reconstituir a história veiculada por um texto narrativo em termos de sequência temporal e logicamente ordenada de eventos, e proceder em seguida à análise das diferentes técnicas discursivas que a atualizam. Na narrativa literária o ato de narração produz simultaneamente uma história e um discurso, dois planos inseparáveis que só uma exigência metodológica pode isolar.

Uma história pode ser veiculada por diferentes meios de expressão, sem se alterar significativamente: a história de um romance pode ser transposta para cinema, história em quadrinhos, teatro, sem contudo perder as suas propriedades essenciais. Existe, assim, uma camada de significação autônoma dotada de uma estrutura específica, independente dos meios de expressão utilizados para a transmitir. É inegável a existência deste fenômeno de transcodificação ao nível da história, mas convém assinalar que nunca é exatamente a mesma história que se conta num romance ou num filme, na medida em que a forma da expressão mantém uma relação de estreita solidariedade com a forma do conteúdo.

AUTOR    O autor é a entidade materialmente responsável pelo texto narrativo, é o sujeito de uma atividade literária a partir da qual se configura um universo com as suas personagens, ações, coordenadas temporais, etc. A categoria de autor é a do escritor que põe todo o seu oficio, todo o seu passado de informação literária e artística, todo o seu caudal de conhecimento e idieas a serviço do sentido unitário da obra que elabora.

A ligação do autor com a sua obra desenvolve-se no apelo (explícito ou tácito) à receptividade do leitor, apelo por vezes expresso num prólogo e feito de alusões às circunstâncias da criação, aos intuitos a que obedeceu, até mesmo, em certos casos, aos sentidos em que a leitura deve ser orientada. A figura do autor reveste-se de certa importância, sobretudo por força das relações que sustenta com o narrador, entendido como autor textual concebido e ativado pelo escritor. De um modo geral, pode dizer-se que entre autor e narrador estabelece-se uma tensão resolvida ou agravada na medida em que as distâncias (sobretudo ideológicas) entre um e outro se definem; em termos narratológicos.

A relação dialógica entre autor e narrador instaura-se em função de dois parâmetros: por um lado, a produção literária do autor e demais testemunhos ideológico-culturais (textos programáticos, correspondência, etc.), por outro lado, a imagem do narrador, deduzida a partir da sua implicação subjetiva no enunciado narrativo.

NARRADOR     A definição do conceito de narrador, como já salientamos, deve partir da distinção inequívoca relativamente ao conceito de autor. Se o autor corresponde a uma entidade real e empírica, o narrador será entendido fundamentalmente como autor textual, entidade fictícia a quem, no cenário da ficção, cabe a tarefa de enunciar o discurso, como protagonista da comunicação narrativa. Atente-se no seguinte exemplo: “Rubião fitava a enseada, – eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa” (M. de Assis, Quincas Borba). A entidade que toma a palavra é tão fictícia como a personagem (Rubião) de quem fala; trata-se de um sujeito com existência textual, tal como a segunda pessoa “vos” a quem se dirige (narratário). Confundir este narrador com Machado de Assis seria tão abusivo como identificá-lo com o próprio Rubião.

O narrador é, de fato, uma invenção do autor. Responsável, de um ponto de vista genético, pelo narrador, o autor pode projetar sobre ele certas atitudes ideológicas, éticas, culturais, cultivando estratégias ajustadas à representação artística dessas atitudes: ironia, aproximação parcial, construção de um alter ego, etc..

As funções do narrador não se esgotam no ato de enunciação que lhe é atribuído. Como protagonista da narração ele é detentor de uma voz observável ao nível do enunciado por meio de intrusões – vestígios mais ou menos discretos da sua subjetividade – que articulam uma ideologia ou uma simples apreciação particular sobre os eventos relatados e as personagens referidas. Por outro lado, a voz do narrador, relevando de uma determinada instância de enunciação do discurso, traduz-se em opções bem definidas adotadas pela situação narrativa adotada: narrador autodiegético, homodiegético e heterodiegético.

A DISTINÇÃO ENTRE NARRADOR AUTODIEGÉTICO, HOMODIEGÉTICO E HETERODIEGÉTICO         Em primeiro lugar, é preciso saber o que se entende por “diegese”. Genette já empregou o termo como sinônimo de história. Mais tarde considerou que era preferível reservá-lo para designar o universo espaço-temporal no qual se desenrola a história.

A expressão “narrador autodiegético” designa a entidade responsável por uma situação ou atitude narrativa específica: aquela em que o narrador da história relata as suas próprias experiências como personagem central dessa história. O registro de primeira pessoa gramatical que em tais narrativas se manifesta é, pois, uma consequência natural dessa coincidência narrador/protagonista.

Mais importante do que as incidências gramaticais são as que respeitam à organização do tempo. Em certos casos, pode verificar-se inteira sobreposição temporal entre narrador e protagonista: é o que se observa no monólogo interior, modalidade de narração simultânea em que o sujeito da enunciação coincide com o do enunciado. Muitas vezes, porém, não é isso que ocorre; o narrador autodiegético aparece então como entidade colocada num tempo ulterior em relação à história que relata, entendida como conjunto de eventos concluídos e inteiramente conhecidos. Sobrevém então uma distância temporal mais ou menos alargada entre o passado da história e o presente da narração; dessa distância temporal decorrem outras: ética, afetiva, moral, ideológica, etc., pois o sujeito que no presente recorda não é já o mesmo que vivenciou os fatos relatados.

A expressão “narrador heterodiegético”, designa uma particular relação narrativa: aquela em que o narrador relata uma história à qual é estranho, uma vez que não integra nem integrou, como personagem, o universo diegético em questão. Na tradição literária ocidental, o narrador heterodiegético constitui uma entidade largamente privilegiada, nos planos quantitativo e qualitativo. Romancistas da estatura de Eça de Queirós (O primo Basílio; O crime do Padre Amaro, Os Maias), Émile Zola (Thérèse Raquin, L assommoir), Tolstoi (Guerra e Paz, Anna Karenina) e muitos outros, instauraram nos seus romances narradores heterodiegéticos. Com eles, estrutura-se uma situação narrativa cujas linhas de força são as seguintes: polaridade entre narrador e universo diegético, instituindo-se entre ambos uma relação de alteridade em princípio irredutível; o narrador heterodiegético exprime-se na terceira pessoa, traduzindo um tal registro a alteridade mencionada o que não impede que o narrador heterodiegético enuncie pontualmente uma primeira pessoa que não chega para pôr em causa as dominantes descritas. O narrador heterodiegético protagoniza também, de modo mais ou menos visível, intrusões que traduzem juízos específicos sobre os eventos narrados.

Finalmente, o narrador homodiegético é a entidade que veicula informações advindas da sua própria experiência diegética; isso quer dizer que, tendo vivido a história como personagem, o narrador retirou daí as informações de que precisa para construir o seu relato, assim se distingue do narrador heterodiegético, na medida em que este último não dispõe de um tal conhecimento direto. Por outro lado, embora funcionalmente se assemelhe ao narrador autodiegético, o narrador homodiegético difere dele por ter participado na história não como protagonista, mas como figura cujo destaque pode ir da posição de simples testemunha imparcial a personagem secundária estreitamente solidária com a central. A relação de Watson com Sherlock Holmes, nos romances de Conan Doyle, representa a típica situação de um narrador homodiegético, o mesmo se observando na A Cidade e as Serras (Zé Fernandes e Jacinto) de Eça de Queirós.

FOCALIZAÇÃO   O termo focalização refere-se ao conceito identificado também por meio de expressões como ponto de vista, visão, restrição de campo e foco narrativo. Em favor de focalização existem vários argumentos. Antes de mais, a sua específica vinculação ao campo da narratologia, ao contrário do que acontece com perspectiva e ponto de vista, mais empregados no âmbito das artes plásticas. A focalização pode ser definida como a representação da informação diegética que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência, quer seja o de uma personagem da história, quer o do narrador heterodiegético; consequentemente, a focalização, além de condicionar a quantidade de informação veiculada (eventos, personagens, espaços, etc.), atinge a sua qualidade, por traduzir uma certa posição afetiva, ideológica, moral e ética em relação a essa informação.

A importância de que, do ponto de vista operatório, podem revestir-se os procedimentos de focalização depende muito da articulação de diferentes soluções de representação, a partir de um leque relativamente limitado de opções. Podendo, em princípio, reduzir-se a três signos fundamentais: focalização externa, focalização interna e focalização onisciente.

Traduzindo uma modalidade específica de perspectiva narrativa, a focalização externa é constituída pela estrita representação das características superficiais e materialmente observáveis de uma personagem, de um espaço ou de certas ações; com o outro intuito de limitar a informação facultada ao exterior dos elementos diegéticos representados, a focalização externa decorre por vezes de um esforço do narrador, no sentido de se referir de modo objetivo e desapaixonado aos eventos e personagens que integram a história. Quando a história é contada em focalização externa, ela é contada a partir do narrador, e este detém um ponto de vista,no sentido primitivo, pictórico, sobre as personagens, os lugares, os acontecimentos. Ele não é, então, de modo algum privilegiado e só vê o que um espectador hipotético veria.

Um dos lugares estratégicos de inscrição da focalização externa é o início da narrativa, quando o narrador descreve uma personagem desconhecida (muitas vezes o protagonista) cuja caracterização minuciosa se processará em momento posterior a essa primeira, precária e de certo modo intrigante descrição: “Um homem vagueava ali, contudo, que não parecia dar-se grande pressa em entrar. Ia e vinha, parava, esquadrinhava a multidão, passava automaticamente de grupo a grupo, nesta ansiedade tortuosa de quem procura com aferro alguém. No olhar, dilatado e teimoso, duma secura inflamada e vítrea, fulgurava a obstinação dum desejo; ao passo que na boca a brasa do charuto, numa febre de pequeninos movimentos bruscos, denotava que os lábios e as maxilas eram nervosamente sacudidos por uma forte preocupação animal” (A. Botelho, O bardo de Lavos).

Constituindo uma modalidade específica de perspectiva narrativa, a focalização interna corresponde à instituição do ponto de vista de uma personagem inserida na ficção, o que normalmente resulta na restrição dos elementos informativos a relatar, em função da capacidade de conhecimento dessa personagem. Colocada como sujeito da focalização, a personagem desempenha então uma função de filtro quantitativo e qualitativo que rege a representação narrativa. O que está em causa não é, pois, estritamente aquilo que a personagem vê, mas de um modo geral o que cabe dentro do alcance do seu campo de consciência, ou seja, o que é alcançado por outros sentidos, para além da visão, bem como o que é já conhecido previamente e o que é objeto de reflexão interiorizada. Por exemplo: “A luz da candeia, quando muito, alcançava os pés da cama. A seguir, numa zona indecisa onde a penumbra ia ganhando palmo a palmo a consistência da sombra, Guilhermina adivinhava os objetos pelo hábito: a mancha esbranquiçada do lavatório, uma cadeira, o armário de pinho. Ao fundo, o quarto mergulhava no escuro. Se a chama oscilava ou o fumo a enegrecia tudo isto se tornava porém incerto e trêmulo”. (C. de Oliveira, Casa na duna); como se vê, para além do que a personagem pode ver, a sua focalização interna abrange também “os objetos [adivinhados] pelo hábito”.

A focalização interna pode ser fixa, múltipla ou variável. No primeiro caso, é numa só personagem (muitas vezes o protagonista) que se centraliza a focalização; a focalização interna múltipla consiste no aproveitamento (quase sempre momentâneo e episódico) da capacidade de conhecimento de um grupo de personagens da história; a focalização interna variável permite a circulação do núcleo focalizador do relato por várias personagens: é o que acontece em muitos romances policiais ou no romance epistolar.

Adotamos aqui a designação focalização onisciente, fazendo-a corresponder à narrativa de narrador onisciente. Por focalização onisciente, entender-se-á, pois, toda representação narrativa em que o narrador faz uso de uma capacidade de conhecimento praticamente ilimitada, podendo, por isso, facultar as informações que entender pertinentes para o conhecimento da história; colocado numa posição de transcendência em relação ao universo diegético. O narrador controla e manipula soberanamente os eventos relatados, as personagens que os interpretam, o tempo em que se movem, os cenários em que se situam. Isso não implica uma representação exaustiva em absoluto, o que seria utópico e materialmente inviável. A atitude seletiva que normalmente cabe ao narrador em focalização onisciente relaciona-se com duas questões relevantes. Em primeiro lugar, com o seu posicionamento temporal em relação à história; relevando habitualmente de uma narração ulterior que aborda a história como concluída e integralmente conhecida. Por outro lado, as possibilidades seletivas da focalização onisciente implicam uma vertente subjetiva. Ao selecionar o que deve relatar, o narrador explícita ou implicitamente interpreta, do mesmo modo que formula juízos de valor.

NARRAÇÃO       Entendida como ato e processo de produção do discurso narrativo, a narração envolve necessariamente o narrador enquanto sujeito responsável por esse processo. A definição e análise das particularidades da narração exigem a referência a diferentes vertentes da sua concretização: o tempo e espaço em que decorre; as específicas circunstâncias que afetam esse tempo e esse espaço, a relação do narrador com a história, com os seus componentes; e com o narratário a quem se dirige. Exemplificando, as narrações da novela sentimental das Viagens de Garrett, das Memórias Póstumas de Brás Cubas de M. de Assis, de Thérèse Raquin de Zola ou do monólogo interior que encerra o Ulisses de Joyce, dependem de parâmetros completamente diversos, agindo esses parâmetros sobre a configuração do discurso enunciado e sobre a imagem da história representada. No primeiro caso, o concreto da viagem, do espaço em que decorre e das personagens que a protagonizam faz da narração um ato simultaneamente lúdico e interventor no presente da história principal; no caso das Memórias Póstumas, a situação do defunto autor, narrando depois da sua morte, estimula esse olhar entre o irônico e o desencantado que a narração plasma; já em Thérèse Raquin, a ulterioridade da narração é conduzida no sentido de consolidar a atitude científica e demonstrativa de um narrador de certa forma distanciado do universo representado; finalmente o monólogo interior encena uma narração executada sobre a irrupção espontânea de reflexões cujo teor desordenado e caótico é devido justamente ao imediatismo de uma tal narração.

TEMPO DA NARRAÇÃO      O tempo da narração é a relação temporal da narração com a suposta ocorrência do evento. Quer dizer que é possível (embora nem sempre fácil) determinar a distância temporal a que se encontra esse ato produtivo (e também o narrador que o protagoniza, bem como aquilo que o envolve) relativamente à história que nele se relata. Quando lemos, no início do conto O fogo e as cinzas, que “Mestre Poupa bombeiro, André Juliano e eu formávamos uma trindade falhada” (M. da Fonseca, O fogo e as cinzas), a simples utilização de um tempo do passado permite depreender a localização do ato de narração num tempo posterior à história; se, de fato, é usual que um narrador aguarde o final da história para a contar, não devemos excluir outras possibilidades: no mesmo conto, logo em seguida, o narrador diz-nos que “há momentos em que vejo isto com uma grande clareza”, assim aproximando consideravelmente (se é que não sobrepondo mesmo) a instância da narração daquilo “vejo isto” a que ela se refere.

As várias possibilidades de colocação temporal da narração em relação à história foram sistematizadas em quatro modalidades:

  1. narração anterior > poucas vezes, a narração é anterior (futuro);
  2. narração ulterior > frequentemente a narração é posterior (tempo passado);
  3. narração intercalada > a narração pode ainda começar depois de se ter iniciado o evento, mas não antes de ele ter terminado (durativo); e
  4.  narração simultânea > a narração pode também ser contemporânea do evento, como se fosse um relato momento-a-momento (presente).

Designa-se como narração anterior o ato narrativo que antecede a ocorrência dos eventos a que se refere. Ela constitui, como é fácil de ver, um processo de enunciação relativamente raro: ela ocorre quando é enunciado um relato de tipo preditivo, antecipando (pela via do sonho, da profecia, da especulação oracular, etc.) acontecimentos projetados no futuro das personagens da história e do narrador. Um exemplo expressivo de narração anterior é o discurso profético de Adamastor sobre os castigos reservados à ousadia dos Portugueses, em Os Lusíadas.

Entende-se por narração ulterior aquele ato narrativo que se situa numa posição de inequívoca posteridade em relação à história. Esta é dada como terminada e resolvida quanto às ações que a integram; só então o narrador, colocando-se perante esse universo diegético por assim dizer encerrado, inicia o relato, numa situação que é a de quem conhece na sua totalidade os eventos que narra. Daí a possibilidade de manipulação calculada dos procedimentos das personagens, dos incidentes da ação, até de antecipação daquilo que o narrador sabe que vai ocorrer: “Trouxeram os filhos, um de quatro anos, outro de dois, só o mais velho vingará, porque ao outro hão de levá-lo as bexigas antes de passados três meses”. (J. Saramago, Memorial do Convento).

Claramente dominante na esmagadora maioria das narrativas, a narração ulterior acontece, em especial, em duas situações narrativas: a que é regida por um narrador heterodiegético, muitas vezes em focalização onisciente e comportando-se como entidade que controla o universo diegético; e a que é protagonizada por um narrador autodiegético, sobretudo quando se trata de evocação autobiográfica ou memorial.

Entende-se por narração intercalada o conjunto de atos narrativos que, não aguardando a conclusão da história, resulta da fragmentação da narração em várias etapas interpostas ao longo da história. Durante a fragmentação, são produzidos micro-relatos, de cuja concatenação se depreende a narrativa na sua totalidade orgânica. De certo modo, pode afirmar-se que a narração intercalada sustenta algumas afinidades com a narração ulterior pois também a narração intercalada tem lugar depois de ocorridos os fatos que relata, fazendo-o, no entanto, de forma entrecortada e por etapas.

No quadro das diversas opções configuradas pelo tempo da narração, a narração simultânea é constituída pelo ato narrativo que coincide temporalmente com o desenrolar da história. Trata-se de uma sobreposição precisa que, pelo rigor que apresenta, se distingue da imprecisão que normalmente caracteriza a distância temporal da narração ulterior ou da narração anterior em relação ao acontecer da história. Não sendo obviamente tão frequente como a narração ulterior, a narração simultânea ocorre, entretanto, numa situação específica: na enunciação do monólogo interior. Trata-se, neste caso, de um discurso que pretende representar o espontâneo fluir de reflexões e divagações situadas no cenário da interioridade de uma personagem. Um dos exemplos mais conhecidos na literatura brasileira é o monólogo interior de Policarpo Quaresma de Lima Barreto: “Mas, como é que ele, tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida, gastara o seu tempo, envelhecera atrás de tal quimera? Como é que não viu nitidamente a realidade, não a pressentiu logo e se deixou enganar por um falaz ídolo, absorver-se nele, dar-lhe em holocausto toda a sua existência? Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo; e assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer uma asneira!”

ESPAÇO          Existe uma tensa relação de interação entre as três categorias fundamentais da narrativa: espaço, personagem, e ação. O espaço constitui uma das mais importantes, não só pelas articulações funcionais que estabelece com as restantes categorias, mas também pelas incidências semânticas que o caracterizam. É a categoria da narrativa que se imbrica com o descritivo. Na realidade, trata-se do descritivo apoiando o narrativo. Entendido como domínio específico da história ele integra, em primeira instância, os componentes físicos que servem de cenário ao desenrolar da ação e à movimentação das personagens: cenários geográficos, interiores, decorações, objetos, etc.; em segunda instância, o conceito de espaço abarca tanto as atmosferas sociais (espaço social) como as psicológicas (espaço psicológico).

A variedade de aspectos que o espaço físico pode assumir vai da largueza da região ou da cidade gigantesca à privacidade de um recatado espaço interior. Em função destas opções certos romancistas são associados aos cenários urbanos que preferiram: Eça é o romancista de Lisboa; Camilo é o do Porto; Machado de Assis do Rio; e Dickens de Londres.

Num plano mais restrito, o espaço da narrativa centra-se em cenários mais reduzidos: a casa, por exemplo, dando origem a romances que fazem dela o eixo microcósmico em função do qual se vai definindo a condição histórica e social das personagens. Por exemplo, A ilustre casa de Ramires de Eça e O Cortiço de Aloísio Azevedo. À medida que o espaço se vai particularizando cresce o investimento descritivo que lhe é consagrado e enriquecem-se os significados decorrentes, basta lembrar o interior da residência em Paris, na A Cidade e as Serras de Eça, com a sua desmedida profusão de instrumentos de civilização.

O espaço social configura-se sobretudo em função da presença de tipos e figurantes: trata-se frequentemente de descrever ambientes que ilustrem, quase sempre com intenção crítica, vícios e deformações da sociedade.

Funcionando também como domínio em estreita conexão com as personagens, o espaço psicológico constitui-se em função da necessidade de evidenciar atmosferas densas e perturbadoras, projetadas sobre o comportamento, também ele normalmente conturbado, das personagens.

Uma das categorias da narrativa que mais decisivamente interferem na representação do espaço é a perspectiva narrativa. Quer quando o narrador onisciente prefere uma visão panorâmica, quer quando se limita a uma descrição exterior e rigorosamente objetiva, quer sobretudo quando ativa a focalização interna de uma personagem. Existem narrativas em que o espaço aparece indelevelmente atingido por um olhar revelador do narrador, é o caso a narrativa.de viagens: da Peregrinação de F. Mendes Pinto, às Viagens de Garrett, mesmo sem se cumprir com rigor a representação de um ponto de vista individual, é a novidade do espaço (ou a sua redescoberta) que rege toda a construção da narrativa

O espaço, enquanto categoria narrativa detentora de inegáveis potencialidades de representação semântica, pode ser entendido também como signo ideológico. Quando é possível observar nele a presença variavelmente explícita de atributos de natureza social, econômica, histórica, etc., o espaço adquire então uma certa contextura ideológica, remetendo. Por exemplo, os espaços físicos do sertão nordestino em Vidas secas de G. Ramos (associados, naturalmente, às personagens, às suas ações e aos juízos do narrador) remetem para a opressão que no romance se denuncia, como aspecto particular de um universo socioeconômico atravessado pelos excessos de uma exploração desumana e brutal.

PERSONAGEM     Categoria fundamental da narrativa, a personagem evidencia a sua relevância em relatos de diversa inserção sócio-cultural e de variados suportes expressivos. Na narrativa literária (da epopéia ao romance e do conto ao romance cor-de-rosa), no cinema, na história em quadrinhos, ou na telenovela, a personagem revela-se, frequentemente, o eixo em torno do qual gira a ação. Por seu lado, os escritores testemunham eloquentemente o relevo e o poder impressivo da personagem. Por exemplo, Flaubert revela: “Quando escrevi o envenenamento de Emma Bovary, tive na boca o sabor do arsênico com tanta intensidade, senti-me eu mesmo tão autenticamente envenenado, que tive duas indigestões”; e Gide, sublinhando a autonomia da personagem, declara que “o verdadeiro romancista escuta e vigia [as suas personagens] enquanto atuam, espia-as antes de as conhecer. É só através do que lhes ouve dizer que começa a compreender quem são”.

Certas tendências do romance dos nossos dias (como o nouveau roman) denunciam uma crise da personagem, considerando-a um ser sem contornos, indefinível, inacessível e invisível, um eu anônimo que é tudo e que não é nada e que quase sempre não é mais do que um reflexo do próprio autor. Na opinião de alguns críticos, o romance de personagens pertence ao passado, caracteriza uma época que assinalou o apogeu do indivíduo. O Estruturalismo recupera o conceito de personagem, equacionando-a nos termos de renovação teórica e metodológica que estas palavras traduzem: “Manifestada sob a espécie de um conjunto descontínuo de marcas, a personagem é uma unidade difusa de significação, construída progressivamente pela narrativa. Uma personagem é o suporte das redundâncias e das transformações semânticas da narrativa, é constituída pela soma das informações facultadas sobre o que ela é e sobre o que ela faz”. Enquanto signo narrativo, a personagem é sujeita a procedimentos de estruturação que determinam a sua funcionalidade e peso específico na economia do relato. Deste modo, a personagem define-se em termos de relevo: protagonista, personagem secundária, ou mero figurante.

A personagem pode revelar uma certa composição – personagem redonda e personagem plana – também ela indissociável da intervenção na ação, da densidade psicológica, da ilustração do espaço social, etc. A personagem plana é facilmente reconhecida, ela se identifica com o tipo e com a sua representatividade social; elas são construídas em torno de uma única idiea ou qualidade, quando nela existe mais de um fator, atinge-se o início da curva que leva à personagem redonda. A personagem redonda reveste-se da complexidade suficiente para constituir uma personalidade bem vincada. A condição de imprevisibilidade que lhe é própria, a revelação gradual dos seus traumas, vacilações, obsessões, constituem os fatores determinantes de sua configuração. É importante levar em consideração que a distinção que se faz entre os dois tipos de personagens é mais didática, existindo forçosamente personagens que oscilam entre as duas classificações.