ENTREVISTA COM O Pe. VALDIRAN
3 DE JULHO, DE 1998. PASTORAL DOS MIGRANTES.
Entrevistei o Padre Valdiran no dia da abertura da Copa. Nem me lembro se o Brasil foi campeão, mas me lembro muito bem de que gostei muito dessa conversa. Segue a transcrição do jeitinho que aconteceu.
PE. VALDIRAN: …também, porque são várias partes da cidade que eu visito, né. E é nestas visitas onde se dá estes…
ENTREVISTADORA: ah, é durante as visitas?
PE. VALDIRAN: estas solicitações.
ENTREVISTADORA: eles já sabem então que em determinado dia você chega até lá.
PE. VALDIRAN: é. Em geral eu ligo pra alguém dizendo que vou. É Osasco, a Grande São Paulo, Guarulhos, Heliópolis, Brasilândia, também em alguns cortiços no Ipiranga.
ENTREVISTADORA: e é uma equipe que faz isso? Esse trabalho? Ou é você só quem faz?
PE. VALDIRAN: bom, eu … o certo é uma equipe, aqui, da Pastoral, mas, em geral, quando eu vou visitar, eu visito sozinho por uma questão de conveniência, tempo, local, espaço, etc.
ENTREVISTADORA: eu preparei algumas perguntas, aqui. Eu vou chamá-lo de secretário, tá? Quem precisa mais do secretário? O homem ou a mulher, o jovem ou o velho, quem é que precisa mais?
PE. VALDIRAN: em geral, é mais a mulher. O jovem e o velho vêm numa escala menor.
ENTREVISTADORA: a mulher é, então, o porta-voz da família?
PE. VALDIRAN: em geral.
ENTREVISTADORA: e quais são os assuntos mais frequentemente tratados?
PE. VALDIRAN: o mais frequente é a situação que a pessoa vive aqui, o caso do desemprego, de não ter casa pra morar, não ter saúde, não ter escola para os filhos, seria, no sentido mais geral, a dificuldade que eles encontram aqui, porque eles vêm com um pensamento, com muitos sonhos e tudo, chega aqui a realidade é uma outra totalmente diferente, né. Então, diante disso, tem esta questão da realidade. Agora, por outro lado, também tem a… a gente podia dizer … a vergonha de dizer isso, né. E muitas vezes há uma maquiagem dessa realidade.
ENTREVISTADORA: e eles já maquiam a realidade pra você?
PE. VALDIRAN: porque eles não querem dar uma de vencidos, né. Mas uma de vencedores. Ontem mesmo, eu vivi esta situação. Tem uma pessoa que chegou do Piauí, quatro filhos, o esposo ganha RS 270,00, paga RS 100,00 por um barraco na beira de um córrego e sobra apenas RS170,00, né. Com estes RS170,00, eles fazem de tudo, durante o mês, e, quando eu falava se ela queria dizer isso pra família, pra mãe dela, ela disse ”não, tenho vergonha”, sobretudo porque o barraco é do irmão e ela não gostaria de dizer isso porque a mãe vai interpretar que ela está falando mal do irmão. Então, tem toda uma áurea de ocultação da realidade.
ENTREVISTADORA: ah, então, a outra pergunta que eu preparei tem uma relação com isso: que tipo de exigência o destinatário da carta faz em relação à fidelidade de sua fala? … ele já maquia ou pede pra você…
PE. VALDIRAN: não, não, não… quando ele fala, quando ele expressa o pensamento, ele tem tudo assim já predeterminado e, depois eu faço questão de ler o que ele escreveu, até por uma questão de fidelidade, de honestidade.
ENTREVISTADORA: quer dizer que a ocultação é a parte dele?
PE. VALDIRAN: é a parte dele, não minha, é claro.
ENTREVISTADORA: durante a feitura da carta, eles pedem pra que você vá relendo a carta? Ou isso é feito de uma vez?
PE. VALDIRAN: não, não. Isso é feito no final, de uma vez. E é feito assim durante a escrita quando falta pensamento, eles se perdem no assunto, eles esquecem alguma coisa. Então eu leio para que ele possa lembrar e daí a recomeçar de novo a exprimir o pensamento.
ENTREVISTADORA: agora, ele decide que tratamento é dado na carta? Senhor, senhora, você, eles exigem…
PE. VALDIRAN: não, eles, em geral, começam, né. Tem uma frase que é padrão …
ENTREVISTADORA: para a abertura da carta?
PE. VALDIRAN: para a abertura. É impressionante, é : “Estou lhe escrevendo esta carta para dar as minhas notícias e ao mesmo tempo saber as suas”. Esta frase é padrão , impressionante!
ENTREVISTADORA: eu pensei que a abertura e o fechamento da carta, você é que desse?
PE. VALDIRAN: não, o fechamento, sim. Mas a abertura é esta frase. é “Prezada fulana”, “Mamãe” ou “Papai”, “Fulano”, …. estou lhe escrevendo esta carta para dar as minhas notícias e ao mesmo tempo saber as suas… então, é impressionante, quando eu pergunto pra quem é a carta, já dizem esta frase, em geral, não são todos. Aí. O tratamento varia de acordo com a pessoa que é o destinatário, pra pessoa que vai receber, né. No caso, se é o pai ou a mãe, é senhor e senhora, se é o namorado, é você , se é um compadre, uma comadre, é senhor, senhora, então varia de acordo com a pessoa a quem…
ENTREVISTADORA: o tratamento tu e vós, por ser no Nordeste, não aparece?
PE. VALDIRAN: não, não aparece. Nunca me lembro de ter acontecido.
ENTREVISTADORA: agora. Eles fazem questão de usar uma linguagem mais formal ou é o coloquial deles mesmo que…
PE. VALDIRAN: é o coloquial. Eu é que, às vezes, tenho que polir um pouco, porque são termos assim que, pra mim fica meio complicado colocar, né. Então, eu de acordo com o mínimo de português, podíamos dizer, eu coloco, por exemplo, a questão dos tratamentos (sic) : pro mó de…, pro donde…
ENTREVISTADORA: estes pro mó de…, pro donde… como é que ficariam?
PE. VALDIRAN: este pro mó de… seria “por causa”, este pro donde…seria “por onde”, não é?
ENTREVISTADORA: e… o destinatário, ele pede ajuda pra resolver algum tipo de conflito em relação à fala dele, ou ele já tem tudo pronto? Pelo jeito, ele já tem tudo pronto, não é?
PE. VALDIRAN: olha, aí varia. Às vezes, a pessoa tem tudo pronto, às vezes, a pessoa pede: “me ajuda, por favor, eu gostaria de dizer isso… mas…não sei…”…às vezes, acontece isso.
ENTREVISTADORA: então , naquele padrão, do jeito que ele está falando, você coloca a sua fala…
PE. VALDIRAN: …fiel, fiel…ao pensamento que está sendo expresso.
ENTREVISTADORA: eu tinha preparado uma pergunta, mas acho que você já respondeu. Se existem fórmulas para abertura e para o fechamento da carta.
PE. VALDIRAN: a abertura, em geral é essa. Agora, para o fechamento, em geral, é também tem isso: “Que Deus… em geral, também para o fechamento é : “lembrança para fulano, sicrano, beltrano, Segundo: “que mãe ou pai me abençoe”. Então, tem estas questões também…
ENTREVISTADORA: ah, é… “que mãe ou pai me abençoe”… não é …“bença, pai”… …“bença mãe”…
PE. VALDIRAN: não, não… “bença, pai”… …“bença mãe”… seria mais no início também…agora, no final é “Que me abençoe”… tem estes detalhes que eu ia me esquecendo. E no fechamento, o que mais aparece é a questão da lembrança. A palavra lembrança, né. Às vezes, tem lembrança pra fulano, sicrano, beltrano, e, às vezes, é lembrança para todos.
ENTREVISTADORA: sintetiza tudo…
PE. VALDIRAN: exatamente. Mas, em geral, na maioria das vezes, aparece mais a lembrança nominal, porque é uma forma de não esquecer ninguém.
ENTREVISTADORA: sei, a preocupação de não esquecer ninguém.
PE. VALDIRAN: exato…
ENTREVISTADORA: e…as respostas? Você só envia a carta, ou tem carta que chega e pedem pra você responder?
PE. VALDIRAN: tem carta que chega e pedem pra ler e pra responder.
ENTREVISTADORA: e a resposta é imediata, acabou de ler, eles já respondem ou pensam no conteúdo da carta…
PE. VALDIRAN: aí varia, depende das situações…tem algumas situações que são assim iminentes, são rápidas, né.
ENTREVISTADORA: sei…
PE. VALDIRAN: tem outras que…
ENTREVISTADORA: eles deixam, não têm preocupação de responder de novo…
PE. VALDIRAN: é. E um outro fato curioso dentro disso aí, é o acesso ao telefone.
ENTREVISTADORA: é mesmo…
PE. VALDIRAN: é o acesso ao telefone público ou telefone de amigos, de vizinhos, ou mesmo, dentro da própria casa, o telefone a título de ramal….
ENTREVISTADORA: lá também tem bastante?
PE. VALDIRAN: meu Deus, é impressionante como ultimamente isso tem se proliferado nas favelas…
ENTREVISTADORA: interessante…aqui em São Paulo também tem muito…
PE. VALDIRAN: sim, mas eu estou falando de São Paulo…
ENTREVISTADORA: porque lá, não…lá eles têm o quê? Uma central…
PE. VALDIRAN: eu estou falando de São Paulo. Lá, quando tem é uma central. Um tipo de posto, chamam posto, né. Mas eu estou falando de São Paulo, eu sinto que tem caído um pouco…
ENTREVISTADORA: …a procura…
PE. VALDIRAN: a procura, por conta desse novo método, inclusive, tem uma senhora que me procurava permanentemente, a minha vizinha, a Odete… tem duas filhas formadas em Faculdade, uma de Segundo Grau, mas continua me procurardo, é impressionante e a história dessa mulher é uma coisa fantástica… mas depois que chegou o telefone, ontem mesmo, eu estive na casa dela, à noite, fui entregar umas fitas que ela pediu pra gravar e perguntei: “Tem notícias de Alagoas?” e ela: “Ah, nunca mais eu liguei, nem eles ligaram”. Então, como muda imediatamente … porque ela diz: “Eu nunca mais escrevi, nunca mais escrevi carta”… então isso é um fato novo que está surgindo assim com uma força muito forte.
ENTREVISTADORA: mas, será que vai desaparecer o gênero, ou para alguns assuntos, eles vão…
PE. VALDIRAN: eu acredito que não , até porque o telefone é ainda muito restrito, não é um acesso assim geral, para todos, né. São alguns que têm acesso, que usam, né. Então, eu acredito que a questão da carta vai continuar. Agora também tem um outro fator que eu acho muito interessante: é que existem muitos jovens, crianças que estão fazendo o Primeiro Grau, terminando o Ginásio, e eles também já entram nessa onda de fazer o serviço de escrever carta para os outros que pedem, né.
ENTREVISTADORA: ah, é?
PE. VALDIRAN: é. É muito interessante, no Nordeste, por incrível que pareça, em cada povoado ou cidade pequena há uma pessoa que desempenha essa função: a professora do lugar, ou a filha do fulano ou do sicrano que é formada. Formada assim: que terminou o Segundo Grau, o Primeiro Grau, então, pra eles é um tipo de doutor, doutora, né? Então, essa pessoa é procurada pra essa função e fazem esse serviço com muita naturalidade, porque se torna uma coisa assim tão natural, é tão própria da situação, que vai passando, né. Realmente, é uma coisa que é bem atual, e a gente pode ainda dizer que é bem atual por conta do analfabetismo que, infelizmente, é muito forte em nosso país, não só no Nordeste mas em todas as regiões.
ENTREVISTADORA: analfabetismo de adultos, não é?
PE. VALDIRAN: de adultos… mas apesar de toda essa conscientização de escola, existem muitas crianças que não frequentam escola.
ENTREVISTADORA: e o destinatário, ele faz referência ao remetente de quem é o intermediário entre eles, ou você é uma figura nula?
PE. VALDIRAN: totalmente anônima.
ENTREVISTADORA: o padre Valdiran escreve pra mim, o padre Valdiran manda lembranças…
PE. VALDIRAN: isso nunca aconteceu. Agora, às vezes, existem casos de pessoas que eu conheço, e eu anexo uma pequena mensagem para a pessoa.
ENTREVISTADORA: você, então, é que vai…
PE. VALDIRAN: mas a pessoa nomear, dizendo: “é o Valdiran, o fulano que está escrevendo”…,isso nunca aconteceu.
ENTREVISTADORA: e é com naturalidade mesmo que você fala, você é um canal pra eles.
PE. VALDIRAN: sim, sim. Agora, é interessante porque pra se chegar a esse ponto é preciso haver duas coisas, que são básicas, né. Em primeiro lugar, é a, vamos dizer, a amizade, o conhecimento, né. Em segundo lugar, a confiança. Sem essas duas coisas…
ENTREVISTADORA: vamos supor, se eu chegar e falar: “eu posso escrever uma carta pra vocês”,eles não vão dar a mínima.
PE. VALDIRAN: não. Pode até ser, se for uma necessidade muito premente, mas em geral, é preciso ter conhecimento e confiança. Até porque eles desconfiam do fato de alguém chegar e se oferecer pra escrever uma carta. E eles sabem lá o que vão colocar?
ENTREVISTADORA: eles são desconfiados?
PE. VALDIRAN: são, porque, realmente, pra eles, qualquer pessoa que sabe ler e escrever é visto como um doutor, uma doutora, é formado, é visto como sábio, né.
ENTREVISTADORA: porque tem a chave do conhecimento, do poder?
PE. VALDIRAN: exatamente, eu acho impressionante, pode ser o pobre que for, mas se souber ler e escrever, então, é um sábio, na visão deles. Pra eles, um padre é o máximo.
ENTREVISTADORA: porque além de saber ler e escrever, ainda é o representante, né.
PE. VALDIRAN: pois é. A visão do povo em relação ao padre, é que o padre sabe tudo. Inclusive, eu acho impressionante, quando eles me dizem: “Pois é, quando o padre quiser deixar de ser padre, ele pode ser qualquer coisa, pode ser médico, pode ser advogado, pode ser…”. “Mas por que você diz isso?” “Ah, porque o padre estuda demais”. É a visão deles, né. E a gente tem que conviver com isso. Não adianta a gente chegar e dizer: “Ah, não…”, eles acham que a gente está sendo modesto, né. Então, é impressionante, a gente tem que conviver com essa situação. E o pior é que, nos trabalhos, a gente tenta ser próximo, o máximo possível.
ENTREVISTADORA: mas você não é o próximo, né.
PE. VALDIRAN: é, mas, infelizmente, a gente é sempre visto assim numa situação de superioridade, por conta disso. Eles têm vergonha: “Ah, o padre vem na minha casa, tem que sentar aqui, tem que beber água daqui”. Toda essa coisa. Isso é uma coisa muito forte.
ENTREVISTADORA: interessante. Bom, as perguntas que eu tinha preparado são essas. Você quer falar alguma coisa que você lembre?
PE. VALDIRAN: é. Uma coisa interessante também é a questão de como eles vão dizer a realidade, né. Vivem aqui uma situação terrível. Muitas vezes, e acontece muito: “Eu estou bem, eu estou trabalhando” sem estar, ou estando trabalhando de bico: “Eu tô trabalhando bem, tô ganhando tal”.
ENTREVISTADORA: e você nem se mexe, numa hora dessa?
PE. VALDIRAN: não, porque tem uma questão aí, muito séria, que é a de não preocupar o outro que está convencido de que ele está conseguindo o objetivo. Então, há uma peocupação muito grande. Também uma outra coisa que pra mim é muito séria é a questão da degradação da família lá, e a constituição de outra família aqui.
ENTREVISTADORA: quando, vamos, supor, o homem vem pra cá.
PE. VALDIRAN: vem pra cá e deixa mulher e filhos. Chega aqui, passa determinado tempo, não pode voltar, não é? E aqui constitui outra família.
ENTREVISTADORA: mas fica em contato com a família de lá?
PE. VALDIRAN: com a família de lá, são raros os casos de esquecer, né. E também tem o outro lado que é o fato do homem vir pra cá e ficar assim um tempo abandonado, sozinho, em pensões ou em casa de colegas, de amigos, numa situação, eu diria até, de desolação, sem ter dinheiro pra mandar, sem ter emprego, sem ter nada. Então, são situações de muito sofrimento. Outra questão muito séria é em relação à droga e em relação à criminalidade, à violência. E acontece muito, eu vivi esta situação de estar lá e, de repente, alguém sabia que foi assassinado, aqui, o filho, o esposo, e ficava toda aquela coisa, sem poder vir aqui, sem poder levar o corpo pra lá. Então, tem de tudo, porque a vida desse povo se constitui de muito sofrimento mesmo.
ENTREVISTADORA: agora, essa decadência ocorre aqui?
PE. VALDIRAN: aqui. Porque lá, a gente poderia dizer que, no sentido moral, no sentido de família, de grupo, de coletividade, há uma certa estabilidade porque todo mundo foi criado ali, se conhece, se ajuda mutuamente. Quando chega aqui há, realmente, uma mudança muito grande de eixo, de contexto, né. E diante desse contexto, podemos dizer que vem a perdição da pessoa.
ENTREVISTADORA: e essa angústia, ela é transmitida em carta?
PE. VALDIRAN: sim, sim. Não, no real, mas no mais profundo da realidade, mas, como já falei, com uma certa maquiagem para não preocupar. Outra coisa interessante é eles virem pra cá, querer voltar e não poder. Eles vão adiando, adiando, pra chegar lá, pelo menos, com um rádio, alguma coisa que seja fruto de seu trabalho, pra mostrar que alcançou o objetivo e, muitas vezes, isso é impossível.
ENTREVISTADORA: quando eles chegam a esse ponto, eles não querem mais contato com a família?
PE. VALDIRAN: bom, em alguns casos, especialmente daqueles que estão na rua, que moram na rua, porque tem vários e eles têm vergonha de dizer pra família que estão nessa situação. Em alguns casos de favela e em alguns casos de cortiço, também. E acontecem até casos também de pessoa que vem, é bem sucedido e nunca mais dá notícia, como também acontecem casos de pessoas que vêm, que é a maioria, e que passam aqui vinte, trinta anos, querendo voltar para fazer uma visita e nunca conseguem porquer nunca têm dinheiro. Acontece também de pessoas que estão, aqui todo ano vão lá fazer visitas. Então, tem de tudo. Outra coisa, que também é muito forte, é o fato de as pessoas virem pra cá, trabalhar e tudo, vivendo aqui quinze, vinte, trinta anos e o único projeto dele é voltar pra morrer no Nordeste. Mas aí, vêm os filhos, vêm os netos, vem toda uma família constituída que impede essa ida pra lá. Alguns ainda conseguem, com derrame, ou já na velhice, com alguma outra deficiência, pra morrer lá. Mas a grande maioria não vai por conta dessa questão de família.
ENTREVISTADORA: questão social mesmo.
PE. VALDIRAN: pois é.
ENTREVISTADORA: agora, em termos de papel, envelope, quem posta a carta no correio, isso fica por conta do secretário?
PE. VALDIRAN: isso, isso, na maioria das vezes, eles providenciam.
ENTREVISTADORA: eles chegam com o papel da carta…
PE. VALDIRAN: agora, o papel, nem sempre é o papel de carta, é raro, é qualquer caderno pequeno ou grande. A postagem da carta, em geral, fica com eles. Uma ou outra vez, acontece de eu me responsabilizar por isso, quando se trata de uma pessoa velha, doente, até pede para eu fazer isso e eu faço, mas isso é raro. Em geral, fica com eles essa responsabilidade.
ENTREVISTADORA: o papel seu foi o de escrever.
PE. VALDIRAN: sim, a gente teria a produção do texto, né.
ENTREVISTADORA: a produção do texto é sua.
PE. VALDIRAN: sim mas, é claro, a produção do texto enquanto escrita, mas com o pensamento da pessoa que está ditando.
ENTREVISTADORA: quer dizer que você não é o autor do texto.
PE. VALDIRAN: não, não.
ENTREVISTADORA: você é apenas o intermediário.
PE. VALDIRAN: o intermediário, e eu tento, o máximo possível, ser fiel, inclusive, às vezes, eu escrevo e a pessoa diz pra mim: “Ó, não tá bom não, faz diferente”…
ENTREVISTADORA: ah, é?
PE. VALDIRAN: …”o senhor tira isso, coloca isso”. Então, tem essa questão também.
ENTREVISTADORA: e a carta, eles querem, é passada a limpo, ou não, normalmente não precisa?
PE. VALDIRAN: normalmente, não. Uma ou duas vezes, quando eles quiseram, assim, mudar o pensamento, que eles não acharam correto e gostariam de dizer outra coisa, então a gente teve que refazer, mas, em geral, fica como está.
ENTREVISTADORA: eles observam se a letra da pessoa é bonita ou feia? Você tem uma letra bonita, por exemplo?
PE. VALDIRAN: não. Mas quando eu vou escrever para eles eu tento, o máximo possível, fazer redondinha e tudo pra eles entenderem.
ENTREVISTADORA: a pessoa que vai receber…
PE. VALDIRAN: é. Mas eu já ouvi reclamação de pessoas que recebem e dizem que tenho letra de médico. Imagina, eu vou ter que andar com uma máquina a tiracolo e ter que datilografar…
ENTREVISTADORA: parece uma coisa sem importância, mas até a letra…
PE. VALDIRAN: pois é. Porque para o analfabeto, realmente é difícil, uma letra de forma já é difícil. Mas é muito interessante isso. E a gente entra nesse trabalho, nesse círculo, né, sem nem perceber.
ENTREVISTADORA: faz quantos anos?
PE. VALDIRAN: olha, eu trabalho aqui em São Paulo, há cinco anos e, no Nordeste, eu trabalhei em Pernambuco e Alagoas, aproximadamente, uns quinze anos. Em Caruaru, dez anos. Então foi mais, eu comecei cedo, com doze anos, eu já estava na luta. Em todos os lugares que eu trabalhei , eu trabalhei em periferia, em favelas, em ocupações. Em qualquer lugar que você vá , a necessidade é sempre a mesma, é impressionante. E tem outa coisa que, para mim, é curioso, é que muitos pais não permitem que os filhos estudem por causa do trabalho, têm que ajudar. Eu mesmo, eu sou fundador de uma escola, lá em Caruaru, numa favela. Seis meses, as crianças estudavam, seis meses as crianças faltavam e eu perguntava por quê. Era o ciclo da cana, eles saíam do Agreste, iam pra Zona da Mata, para a colheita da cana, né. E quando voltavam, retornavam às aulas. Isso era uma coisa que me chamava muito a atenção. Mas outros não querem que as filhas estudem, para não escreverem bilhetinho pros namorados.
ENTREVISTADORA: as meninas?
PE. VALDIRAN: sim. Olha, por incrível que pareça, isso parece coisa do século passado, mas acontece isso, ainda hoje. Eu já ouvi tanto isso, já conversei com os pais: “Ah, não, isso é safadeza, porque estuda, aprende a ler e depois fica escrevendo bilhetinho pro namorado, eu não quero”. Só por conta disso. Uma coisa tão mesquinha, ridícula pra nós, mas para eles têm um sentido.
ENTREVISTADORA: e a televisão, como é que fica, eles assistem à televisão?
PE. VALDIRAN: assistem. A televisão, eu diria é uma praga. Numa favela, o pessoal não tem o que comer, não tem colchão pra dormir, dormem no chão, mas tem televisão. Vizinho de onde eu estou , não tem muita não. Tem, mas não tanto. O nome da favela Sapolândia, mudou pra Recanto Santa Maria, a maioria absoluta é de Piauí, alguns outros são de Alagoas, Pernambuco, Sergipe……… outro fato interessante, já que estamos falando regionalismo, é que , em Alagoas, têm termos com sentido completamente diferente de Pernambuco. Em Alagoas, têm termos que não existem em Alagoas, e são estados vizinhos. Em Alagoas, têm termos que não existem em nenhum outro lugar do país, por exemplo, já ouviu falar em “catenga”?
ENTREVISTADORA: catenga?
PE. VALDIRAN: sim. Não é capenga, é catenga. Pois, esta palavra só existe em Alagoas, se você perguntar pra qualquer alagoano, ele sabe. Agora, se você perguntar pra qualquer outra pessoa do país, não sabem. Catenga quer dizer lagartixa.
E; ah, lagartixa?
PE. VALDIRAN: sim. Lagartixa.
ENTREVISTADORA: catenga, de onde será que veio esta palavra?
PE. VALDIRAN: não sei. E é uma palavra bem usual. A mesma coisa a palavra “frande”, pra nós, em Alagoas, é uma palavra imoral, para Pernambuco, é uma palavra usual, é uma lata. Até o termo “frandileiro”, eu nunca ouvi falar em minha vida, chegando em Pernambuco, indo morar lá, então, eu ouvi o termo. Então, essa é uma particularidade que, nas cartas, você precisa ter cuidado, né. Pra não usar um termo que tenha outro sentido. Perguntar por quê. Eu pergunto muitas vezes: “O que é que significa isso?”
ENTREVISTADORA: existe uma riqueza de vocabulário, né. Deve ter gente estudando isso.
PE. VALDIRAN: eu não sei. A última vez que estive em Alagoas, aliás, no Nordeste, eu peguei uma folha de caderno e um lápis e tentei anotar, porque é o seguinte, quando você está no Nordeste, morando na região, convivendo, você não percebe, agora, depois que você vai para outras regiões do país, você passa tempo, como é o meu caso, e você volta, e você escuta aquilo que você escutou quando era criança, então, você nem lembra mais. Tem um sentido diferente, né, uma coisa estranha pra você. Eu fiquei tão impressionado com aquilo, que eu tentei anotar, mas depois eu perdi, até porque eu penso em fazer um trabalho assim, mas eu não tenho fôlego pra continuar. Então, existe muito isso também.
ENTREVISTADORA: pra isso, você precisaria ter informantes…
PE. VALDIRAN: claro, claro. Agora, eu volto pra questão da carta, um outro grande desafio é questão do endereço e, sobretudo, de CEP.
ENTREVISTADORA: eles não sabem?
PE. VALDIRAN: eles não sabem, às vezes, a gente tem que se matar pra procurar.
ENTREVISTADORA: eu tenho a impressão que até o nome da cidade, eles falam diferente, você vai procurar e não acha, não existe…
PE. VALDIRAN: é um horror, um horror. E tem uma outra agravante ainda, essa favela a que me refiro, da Vila Sapolândia, não existe endereço, é tudo beco. Então eles colocam o endereço de uma rua central, que está fora da favela e a maioria das cartas vem praquele local. Então, você imagina escrever pra esse povo, colocar o endereço assim comum para todos, a pessoa da casa fica responsável, como um tipo de carteiro, é uma confusão. A gente não sabe nem como se situar diante disso aí.
ENTREVISTADORA: isso me faz lembrar quando o Brasil era Colônia e logo no começo do Reino Unido a Portugal, as cartas chegavam no Rio de Janeiro, de Portugal, havia muita família portuguesa que tinha uma parte aqui no Brasil. Então, eles, as cartas chegavam lá e, no dia que chegava o navio, o pessoal todo corria pra lá. Eles gritavam “Fulano de tal”, eles não eram recebidos no palácio, não. Eles jogavam as cartas pela janela.
PE. VALDIRAN: já pensou? Inclusive tem um garoto de dezesseis anos do Piauí, chamado José Rocério e ele me dizia: “Ó padre, já estou cansado de ser carteiro aqui, nessa favela”. Porque a rua dele é a rua principal, só tem uma. “Porque toda carta, toda conta, cobrança vem aqui pra minha casa. Eu tenho que levar pra todo mundo, eu não aguento mais”. Ele disse. Agora, uma coisa que , como brasileiro, eu tenho muita vergonha. É de ter um país como o nosso de situações tão extremas.