AUTO REPRESENTADO NA FESTA DE SÃO LOURENÇO[1]
José de Anchieta
SEGUNDO ATO
(Eram três diabos que querem destruir a aldeia com pecados, aos quais resistem São Lourenço, São Sebastião e o Anjo da Guarda, livrando a aldeia e prendendo os tentadores cujos nomes são: Guaixará, que é o rei; Aimbirê e Saravaia, seus criados)
GUAIXARÁEsta virtude estrangeiraMe irrita sobremaneira.Quem a teria trazido,com seus hábitos polidosestragando a terra inteira?Só eu permaneço nesta aldeiacomo chefe guardião.Minha lei é a inspiraçãoque lhe dou, daqui vou longevisitar outro torrão.Quem é forte como eu?Como eu, conceituado?Sou diabo bem assado.A fama me precedeu;Guaixará sou chamado.Meu sistema é o bem viver.Que não seja constrangidoo prazer, nem abolido.Quero as tabas acendercom meu fogo preferidoBoa medida é bebercauim até vomitar.Isto é jeito de gozar a vida,e se recomendaa quem queira aproveitar. |
A moçada beberronatrago bem conceituada.Valente é quem se embriagae todo o cauim entorna,e à luta então se consagra.Que bom costume é bailar!Adornar-se, andar pintado,tingir pernas, empenadofumar e curandeirar,andar de negro pintado.Andar matando de fúria,amancebar-se, comerum ao outro, e ainda serespião, prender Tapuia,desonesto a honra perder.Para isso com os índios convivi.Vêm os tais padres agoracom regras fora de horapra que duvidem de mim.Lei de Deus que não vigora.Pois aqui tem meu ajudante-mor,diabo bem requeimado,meu bom colaborador:grande Aimberê, perversordos homens, regimentado.
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Nos ato elocutivos a seguir, o locutor (GUAIXARÁ) situa sua intenção comunicativa em relação a si próprio, no seu ato de enunciação. Os critérios que identificam esses atos elocutivos são: o locutor se apresenta sob diversas formas (pronome pessoal e possessivo em primeira pessoa; o estatuto da frase: assertivo/declarativo/interrogativo); o interlocutor não pode explicitar sua posição, ao contrário, o locutor pode explicitar sua posição.
ATO ELOCUTIVO |
TEXTO |
Declaração |
Esta virtude estrangeira me irrita sobremaneira. |
Questionamento |
Quem a teria trazido, com seus hábitos polidos estragando a terra inteira? |
ATO ELOCUTIVO |
TEXTO |
Declaração | Só eu permaneço nesta aldeia como chefe guardião. |
Justificativa | Minha lei é a inspiração que lhe dou, daqui vou longe visitar outro torrão. Quem é forte como eu? Como eu, conceituado? Sou diabo bem assado. A fama me precedeu; Guaixará sou chamado. |
ATO ELOCUTIVO |
TEXTO |
Declaração | Meu sistema é o bem viver. |
Justificativa | Que não seja constrangido o prazer, nem abolido. Quero as tabas acender com meu fogo preferido. Boa medida é beber cauim até vomitar. Isto é jeito de gozar a vida, e se recomenda a quem queira aproveitar. A moçada beberrona trago bem conceituada. Valente é quem se embriaga e todo o cauim entorna, e à luta então se consagra. Que bom costume é bailar! Adornar-se, andar pintado, tingir pernas, empenado, fumar e curandeirar, andar de negro pintado. Andar matando de fúria, amancebar-se, comer um ao outro, e ainda ser espião, prender Tapuia, desonesto a honra perder. Para isso com os índios convivi. |
ATO ELOCUTIVO |
TEXTO |
Constatação | Vêm os tais padres agora com regras fora de hora pra que duvidem de mim. |
Ameaça | Lei de Deus que não vigora. Pois aqui tem meu ajudante-mor, diabo bem requeimado, meu bom colaborador: grande Aimberê, perversor dos homens, regimentado. |
[1]http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/autofestasaolourenco.pdf. Fonte: ANCHIETA, José de. Auto representado na Festa de São Lourenço, Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro – Ministério da Educação e Cultura, 1973.