Os trabalhos da mão[1]
Para a Ecléa
Parece ser próprio do animal simbólico valer-se de uma só parte do seu organismo para exercer funções diversíssimas. A mão sirva de exemplo.
A mão arranca da terra a raiz e a erva, colhe da árvore o fruto, descasca-o, leva-o à boca. A mão apanha o objeto, remove-o, achega-o ao corpo, lança-o de si. A mão puxa e empurra, junta e espalha, arrocha e afrouxa, contrai e distende, enrola e desenrola; roça, toca, apalpa, acaricia, belisca, unha, aperta, esbofeteia, esmurra; depois, massageia o músculo dorido.
A mão tateia com a ponta dos dedos, apalpa e calca com a polpa. Raspa, arranha escarva, escarifica e escarafuncha com as unhas. Com o nó dos dedos, bate.
A mão abre a ferida e a pensa. Eriça o pelo e o alisa. Entrança e destrança o cabelo. Enruga e desenruga o papel e o pano. Unge e esconjura, asperge e exorciza.
Acusa com o index, aplaude com as palmas, protege com a concha. Faz viver alçando o polegar; baixando-o, manda matar.
Mede com o palmo, sopesa com a palma.
Aponta com gestos o eu, o tu, o ele; o aqui, o aí, o ali; o hoje, o ontem, o amanhã; o pouco, o muito, o mais ou menos; o um, o dois, o três, os números até dez e seus múltiplos e quebrados. O não, o nunca, o nada.
É voz do mudo, é voz do surdo, é leitura do cego.
Faz levantar a voz, amaina o vozerio, impõe silêncio. Saúda o amigo, balançando leve ao lado da cabeça e, no mesmo aceno, estira o braço e diz adeus. Urge e manda parar. Traz ao mundo a criança, esgana o inimigo.
Ensaboa a roupa, esfrega, torce, enxágua, estende-a ao sol, recolhe-a dos varais, desfaz-lhe as pregas, dobra-a, guarda-a.
A mão prepara o alimento. Debulha o grão, depela o legume, desfolha a verdura descarna o peixe, depena a ave e a desossa. Limpa. Espreme até extrair o suco. Piloa de punho fechado, corta em quina, mistura, amassa, sova, espalma, enrola, amacia, unta, recobre enfarinha, entrouxa, enforma, desenforma, polvilha, guarnece, enfeita, serve.
A mão joga a bola e apanha, apara e rebate. Soergue-a e deixa-a cair.
A mão faz som: bate na perna e no peito, marca o compasso, percute o tambor e o pandeiro, batuca, estala as asas das castanholas, dedilha as cordas da harpa e do violão, dedilha as teclas do cravo e do piano, empunha o arco do violino e do violoncelo, empunha o tubo das madeiras e dos metais. Os dedos cerram e abrem o caminho do sopro que sai pelos furos da flauta, do clarim e do oboé. A mão rege a orquestra. ( …)
Para perfazer tantíssimas ações basta-lhe uma breve, mas dúctil anatomia: oito ossinhos no pulso, cinco no metacarpo e os dedos com as suas falanges, falanginhas e falangetas.
[1] BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Editora Cultrix, 1990.