Mês: maio 2013

Comentários sobre Prolegômenos a uma Teoria da Linguagem de Hjelmslev. Nílvia Pantaleoni

Comentários sobre Prolegômenos a uma Teoria da Linguagem[1]

Refletir sobre a obra de Louis Hjelmslev, Prolegômenos a uma teoria da linguagem, exige certo esforço, contudo, à medida que uma nova leitura se processa consegue-se vislumbrar aos poucos o edifício da teoria da linguagem que, no último capítulo, o autor nos deixa entrever, quando afirma que precisara se basear provisoriamente num ponto de vista imanente ‑ estabelecendo como objeto a constância, o sistema e a função interna da linguagem ‑ com a finalidade maior de atingir o domínio do saber humano em sua totalidade. Passo a comentar as definições de linguagem, texto e língua; sistema, norma e uso; o signo do ponto de vista saussuriano que subsidiou a noção de signo hjelmsleviano; plano de expressão e plano de conteúdo.

A linguagem, para Hjelmslev, é considerada como um princípio retor, um princípio de categorização do mundo. A função do linguista é trabalhar a linguagem que se define por ser um texto. O texto, por sua vez, é considerado como uma sintagmática que se projeta em todas as direções e em todos os sentidos. Já “uma língua pode ser definida como uma paradigmática cujos paradigmas se manifestam por todos os sentidos”, é um sistema de signos, adequada para formar novos signos. Ela se ordena com uma porção de figuras – unidades menores do sistema ‑ e de signos – unidades do texto. A língua é concebida como uma combinatória, é interdependência entre termos, quer dizer, não se tem um sem os outros. É nesse sentido que Hjelmslev considera a língua como texto infinito, cuja estrutura precisa ser definida; ela é uma rede de funções semióticas. A cada função semiótica são associados dois funtivos que são os dois argumentos que a função coloca em relação: a forma do conteúdo e a forma da expressão.

O sistema de uma língua (ou seu esquema) é uma realidade puramente formal; é o conjunto de relações abstratas que existem entre seus elementos, independentemente de toda caracterização fonética ou semântica destes. O exemplo que Hjelmslev apresenta é do r francês que se define, no sistema, pelo modo como se combina, na sílaba, com os outros fonemas. O sistema é ordenado pelo processo que é inato, enquanto que  próprio sistema é aprendido, é social. A norma, por outro lado, é o conjunto de traços distintivos que, na manifestação concreta de um sistema, permitem reconhecer os elementos uns dos outros. Continuando com o exemplo do r, do ponto de vista da norma, ele se define como uma consoante vibrante, pois isto já é suficiente para distingui-lo de qualquer outro fonema francês. O uso linguístico, portanto, são os fenômenos semântico-fonéticos por meio dos quais o sistema se manifesta de fato. A língua atual que nós conhecemos é sui generis, é aquilo que no momento está em uso. A norma representa uma espécie de abstração operada com relação ao uso.

Para Saussure e os linguistas da escola de Praga, o signo é visto pelas suas funções externas (palavras e relações de palavras, umas portadoras de significado, imagem mental, enquanto outras são apenas relacionais), ele representa então o plano das ideias mais o plano dos sons. Quando se trata do signo hjelmesleviano, é necessário estabelecer as definições de função e de funtivo: função é a dependência que preenche as condições de uma análise – descrição de um objeto através das dependências homogêneas de outros objetos – e funtivo é o objeto que tem uma função em relacionamento a outros objetos Nesse sentido, para Hjelmslev, o signo é visto como dois funtivos: conteúdo e expressão (plano do conteúdo e plano da expressão). A expressão é do sistema; o conteúdo é do processo. O sentido é amorfo, podendo ser conformado de maneiras diferentes nas diferentes línguas. O que determina a sua forma são as funções da língua. A função de um signo enquanto ser signo de algo é a função entre a forma e a substância. sendo que sua função é significar, ele não tem significação; toda significação surge no contexto situacional pleno que a língua estabelece. O signo tem uma função constante porque todas as línguas têm um processo, mas diferenciam-se pelo sistema.

Para abordar a distinção entre plano de conteúdo e plano de expressão, é necessário retomar um dos postulados de Saussure que prega: a língua é forma, não é substância. O que distingue uma língua das outras é a sua configuração, a sua forma; enquanto que a substância (as significações, do ponto de vista semântico) é passível de ser traduzido para outras línguas. A partir da distinção saussuriana, Hjelmslev, postula que cada língua deve ser caracterizada não só no plano da expressão (pelos sons, pela forma, que ela escolhe para transmitir a significação), mas também no plano do conteúdo (pela maneira como apresenta a significação) pois os signos de uma língua raramente têm equivalentes semânticos exatos em outra. Uma língua não é um jogo de rótulos, não é simplesmente uma nomenclatura, é necessário descrevê-la também no plano do conteúdo.

Finalizando, é preciso acrescentar que a teoria de Helmslev abrange todas as linguagens e incorpora todos os tipos de texto, o sistema pode ser transcodificado numa tela, numa fala, em gestos, em qualquer linguagem de sinais. Contudo, o linguista pode e deve concentrar toda a sua atenção sobre as línguas ‘naturais’ e deixar para outros especialistas, principalmente para os lógicos, a tarefa de estudar as outras estruturas semióticas.


[1] HJELMSLEV. L.  Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Tradução: J.Teixeira Coelho Netto. SP: Perpectiva, 1975.

A METÁFORA DO AMOR NA CORRESPONDÊNCIA DE RUI BARBOSA (Parte 4). Nílvia Pantaleoni

A METÁFORA DO AMOR NA CORRESPONDÊNCIA DE RUI BARBOSA (Parte 4)

 

Apresentação do corpus

Entre maio e novembro de 1876, Rui Barbosa já comprometido com Maria Augusta e frequentador assíduo de sua casa, parte para o Rio de Janeiro, vivendo distante da noiva o seu período de noivado Ilustre na Bahia, ele procura na capital do Império, o reconhecimento de seus pares, deixando documentada em sua correspondência à noiva toda dificuldade por que passava. É de interesse histórico, portanto, a leitura de suas cartas: a Corte e, também, Petrópolis servem de cenário, mas percebe-se que não o atrai a vida social e que ele se absorve inteiramente no trabalho, procurando conseguir meios para concretizar seu casamento, o que vai conseguir ainda em novembro de 1876.

A interação de fala proporcionada pela carta é, de certa forma,  sui generis pois os interlocutores, que passaremos a denominar R. (remetente) e D. (destinatária) têm entre eles o espaço e o tempo, duas coordenadas que aparentemente podem parecer antagonistas dos correspondentes, mas têm o papel de aliados, na medida em que permitem que haja uma pausa entre uma interação e outra que se revela muito fecunda, pois R. pode elaborar com mais cuidado sua mensagem, depois de ler, reler, refletir sobre as palavras da amada.

Infelizmente não temos as respostas que Maria Augusta enviava a Rui, teremos que nos contentar com os comentários dele a respeito das cartas dela para verificarmos em que medida a força ilocucionária de seu discurso afetava seus sentimentos e suas decisões.

As expressões linguísticas empregadas por R. para manifestar o amor que sentia por D. e os epítetos com que se referia a ela não fogem da construção metafórica. Sem metaforizar, é impossível a expressão de um sentimento, de uma emoção. No caso do sentimento amoroso, todo um sistema metafórico, organizado por meio de várias metáforas, vai sendo construído à medida que as cartas vão se sucedendo.

A partir do levantamento das expressões linguísticas empregadas pelo remetente para falar de seus sentimentos e da mulher que, ou os provocava ou os compartilhava, obtivemos uma série de métaforas que nos permitem fazer um mapeamento que tem como ponto central a metáfora que podemos considerar essencial para o R., que certamente não fala só por si, mas por toda uma sociedade da qual ele fazia parte:             A VIDA É UM DOM DIVINO. Esta metáfora de construção radial tem muitos raios que estabelecem sub-estrututras. As que nos interessam em nossa análise são as sub-estruturas da metáfora do amor e da mulher amada, levando-se em consideração que elas são conceptualizadas a partir de um determinado momento da vida de um homem de vinte e sete anos, extremamente culto e exigente consigo próprio, bacharel em Direito, defensor ferrenho dos valores de uma sociedade cristã- patriarcal, solitário e apaixonado. Seu conhecimento de mundo, suas crenças, seus preconceitos, seus valores são elementos fundamentais no estabelecimento desse sistema metafórico. Também, além de todos os elementos culturais apresentados não podemos nos esquecer das metáforas organizacionais construídas a partir de duas percepções antagônicas básicas O BOM E O MAU, que estabelecem que o que é bom está no alto, o que é mau está embaixo; o que é bom é limpo, o que é mau é sujo,  o que é bom é claro, o que é mau é escuro, o que é bom é são, o que é mau é doente, e assim por diante, que são essenciais para a conceptualização de inúmeros sistemas metafóricos.

As metáforas encontradas foram as seguintes: O amor é entrega, posse, união; o amor é puro; o amor é dor; o amor cura; o amor é luz, guia e proteção; o amor é o mais intenso sentimento; o amor é abençoado pela família; o amor é felicidade; a imaginação alimenta o amor.

  O AMOR É ENTREGA, POSSE, UNIÃO

…a tua vida é a de outra pessoa, que pôs todo o seu futuro no teu….

…como se em tua presença, ou dentro de ti mesma, estivessem passando os meus sofrimentos.

 Tua imagem, tua alma estão em mim como na presença…

 …onde o meu coração algum dia descanse, entre os teus carinhos…

 …aquela por quem eu vivo ainda; porque hoje não trabalho, não luto, não aspiro nada senão com ela, por ela e para ela; porque sem ela não aceito coisa nenhuma…

 …a minha alma e a tua, no seio dessa profunda melancolia, se comunicassem, de longe mesmo, invisivelmente por algumas dessas relações misteriosas com que Deus prende tantas vezes, sem sabermos como, os nossos destinos?

O AMOR É PURO

Aqueles abraços da despedida, longos, puros…

…e foi a pureza sem manchas de tua alma e do teu amor que me inspirou a coragem desta aventura.

…tu assim toda pureza, toda fé, toda virtudes, toda afetos, castos e sem mácula como o céu?

…de ter em tua alma sem mancha um ninho…

És cheia de bondade e brandura como o céu mesmo.

Pede-a muito a Deus… Ele não será surdo ao anjo que me deu.

…felicidade tranquila e pura de amores, como os nossos…

…a fé em nós mesmos e naquele que não criou debalde os anjos e as flores como tu.

…a mãe de família virtuosa, a esposa devotada e sem mácula, que hás de ser…

…ser-me-ia impossível acreditar num ato menos angélico de quem tão celeste é como tu.

Por que não há de dar Deus melhor destino às criaturas celestes como tu…

Não és tu que careces esforçar-te por te “tornares digna de mim”,… eu é que, hoje, toda vez que pratico o bem, penso em ti, procurando por ele, melhorando-me, corrigindo-me…

…como é lindo o nosso amor!… não tem nada de que corar, porque é puro, transparente…

O AMOR É DOR. O AMOR CURA

 …estremecidos abraços, cheios de pranto e de soluços…

…meu coração abismar-se-á todo na dor dessas recordações.

Mas ao menos sobre a tristeza desta saudade sem limite haverá um raio de luz…

para que no teu sofrimento haja uma gota de bálsamo!

 …estou ansiosíssimo por saber de ti… cuja ausência tanta amargura me tem causado.

 …longe de ti o meu coração não pode ter um instante de repouso.

…esta separação me traspassa, me extenua…

…os sentimentos sucessivos de teucoraçãomagoado e triste. 

…a tua lembrança é a companhia única deste meu ermo!

 A tua saudade ocupa-me a alma inteira..

O meu tédio, as minhas saudades não te careço eu descrever.

 …o teu coração as adivinhará, que as terá sentido, como se em tua presença, ou dentro de ti mesma, estivessem passando os meus sofrimentos.

…não te desampares deste modo a um sofrimento, que, exagerado, será funesto a nós ambos.

…cada palavra tua lançada no papel para mim é uma carícia abençoada para uma alma ferida…

…que a tua ausência amargamente agonia…

…aflições de uma tão sombria e deflorida mocidade como a minha tem sido.

 …assim como foi o bálsamo para a tua tristeza, está sendo também a mitigação do meu sofrimento!

Que consolo, pois, calcula não me tem sido a certeza de que as minhas letras…

…repassadas no amor e na mágoa das minhas saudades

  …foram para a tua dor esse calmante benfazejo, que te restituiu as forças, asserenou-te o espírito, e te está mostrando sem nuvens o horizonte das nossas esperanças!

 …cada meiga palavra tua é reanimadora como um celeste orvalho.

 …pensas desveladamente na minha situação, e quando podes, com o bálsamo da tua meiguice, buscas mitigá-la.

 Tinha apenas a tristeza inevitável de um desejo ardente, que espera com avidez, e sem outro consolo, a satisfação da sua sede.

…a minha vida, as minhas lágrimas…

 Estará o meu coração abafado sob o peso da sua agonia, e serei forçado a palestrar, a escutar estranhos, a ser amável, a rir.

Eu não tenho nada senão esta espécie de deserto aflitivo, onde te vejo à distância imensa…

 Ao meu coração é tão suave este prazer, que, se me fosse possível obedecer-lhe nisto, diariamente receberias cartas minhas.

Se, pois, nuvens de dor te passam pelo coração…não mas ocultes nunca…

 Desafoga sempre em mim tuas cismativas e sombrias saudades. Eu também as tenho e quantas!

Misturemo-las…e neste sofrermos juntos…

 ….às vezes transborda o sofrimento, e eu nem sempre posso ter a arte de encobri-lo.

É o refrigério único de que disponho; porque em roda de mim tudo me é desconsolador…

O que me tem salvado, porém, até agora é o teu amor.

 Senão o desespero absoluto com as suas desgraçadas consequências já me teria fulminado há muitos dias.

Como é triste…esta solidão assim, no meio da multidão indiferente e distraída…

 …sem uma alma que comparticipe conosco, ou entenda, sequer, o mais imperioso de todos os sentimentos do coração.

 …que o tempo não extingue nunca e o sofrimento redobra…

…o teu amor me protege, me conforta, me vela, me revive em todas as ocasiões críticas…

…todos os meus sofrimentos não servem senão para centuplicar o meu amor…

 De modo nenhum quero que padeças.

Tenho-te a ti como a mais melindrosa de todas as flores, e qualquer sopro receio que a ofenda.

 …eu serei feliz, feliz dessa felicidade amarga do sofrimento, que é a nutrição única das almas sem esperança.

 Não, eu não te acabrunharei mais com as sombrias cismas de minha alma.

O AMOR É LUZ, GUIA E PROTEÇÃO

Mas ao menos sobre a tristeza desta saudade sem limite haverá um raio de luz…

 Como ele iluminou os primeiros anos de minha vida…

 …tu serás a estrela da que me resta!

 Como ela foi o anjo da guarda do meu passado… 

…é a bênção dela ao nosso amor, a proteção do céu à nossa aliança, a garantia das esperanças de nós dois!

 Mas Deus decerto é cheio de bondade; e, se eu não sou digno do seu amparo, não no serás tu…

 É a minha esperança, o meu consolo, o meu arrimo nesta aventurosa tentativa.

 Mas a minha estrela, o meu norte, o meu anjo da guarda, o meu destino é tu…

 Não cesses as tuas súplicas ao Deus de tua crença, não as interrompas, a fim de que Ele abençoe e proteja essa tentativa…

 …encontraremos essa consolação extrema dos angustiados: — a mútua confiança, a esperança mútua, a fé em nós mesmos e naquele que não criou debalde os anjos e as flores como tu.

 ….por algumas dessas relações misteriosas com que Deus prende tantas vezes, sem sabermos como, os nossos destinos?

 …é o meu orgulho, a minha estrela, o meu anjo…

Não receies que eu desfaleça, ou caia. Deus não no há de permitir, não por mim, que nada valho, mas por ti, a quem indissoluvelmente prendeu-me pelo mais apaixonado e irresistível sentimento.

 É que tu és realmente a estrela da minha noite. Tua imagem, tua lembrança é um clarão do céu na minha vida, cada vez mais escura.

 Procurarei alegrá-la com a luz do teu amor.

O AMOR É O MAIS INTENSO SENTIMENTO

…eu te amo muito, muito, ilimitadamente, indizivelmente, inexcedivelmente, de todo o meu coração, de toda a minha alma, de toda a minha vida.

 …esta separação me traspassa…

 A tua saudade ocupa-me a alma inteira…

 …se eu não sou digno do seu amparo, não no serás tu…tu assim toda pureza, toda fé, toda virtudes, toda afetos, castos e sem mácula como o céu?

…o teu amor é a minha felicidade suprema e a minha suprema soberbia.

 …o meu mais íntimo e veemente desejo? Se não receasse ofender-te, eu dir-te ia que a minha impaciência é ainda mais violenta e imperiosa que a tua.

 …uma cara esperança da minha alma, nutrida, nutrida, nutrida longo tempo com o meu amor, a minha vida, as minhas lágrimas…

…te amo com uma energia e uma ternura, que absorvem ao mesmo tempo, o meu coração, o meu espírito, a minha existência toda…

…do meu amor, da minha fidelidade e da minha constância tenho-te dado já demonstrações que se não excedem….

 …o mais imperioso de todos os sentimentos do coração.

 …prendeu-me pelo mais apaixonado e irresistível sentimento…

 Por mais que te diga, tem sempre mais que te dizer; e, quando nada tivesse, dir-te-ia cem, mil, um milhão de vezes o quanto, o como, o quão eternamente ama-te…

 …todos os meus sofrimentos não servem senão para centuplicar o meu amor; e, sejam quais forem os derradeiros resultados…

 …nunca hesites sobre os meus sentimentos, que para contigo são cada vez mais apaixonados.

O AMOR É FELICIDADE, É ABENÇOADO PELA FAMÍLIA

Teu nome…é o nome da minha mãe.

…o nome de minha Mãe, que tu tens..

…tudo isso, a meus olhos, desbota-se em comparação da felicidade íntima, suavíssima, inesgotavelmente consoladora …

Bendito esse prazer…

…o teu amor é a minha felicidade suprema e a minha suprema soberbia.

…como me sinto feliz. é como se acariciasses a minha alma; encostada a teu seio, com a melodia da tua voz, a umidade dos teus beijos, a brandura das tuas mãos, o contato dos teus cabelos perfumados.

Esta bondade, tão do céu, em que te vais cada vez mais vivamente distinguindo, zela-a, apura-a sempre; porque dela é que vem essa felicidade tranquila e pura de amores, como os nossos…

…a mãe de família virtuosa, a esposa devotada e sem mácula…

…nosso amor…não tem uma reserva, um segredo onde não possa penetrar sem acanhamento nosso o olhar de nossos amigos e de nossos Pais.

…as cartas, que te escrevo, são para eles também; porque nós não trocamos palavra que eles não possam ouvir.

A IMAGINAÇÃO ALIMENTA O AMOR

Contemplo naquela intimidade incessante e afetuosa a imagem viva de nossa felicidade comum de há poucos dias, interrompida agora.

Mas os olhos da alma, que incessantemente se nutrem de tua imagem distante…

…a tua lembrança é a companhia única deste meu ermo!

…não sabem adivinhar daqui a situação de tua vida…

Eu estava sozinho, recolhido no meu coração, e pensava ternamente em ti.

…uma cara esperança da minha alma, nutrida, nutrida, nutrida longo tempo com o meu amor, a minha vida, as minhas lágrimas…

…não imaginas como me sinto feliz…

Lembro-me de ti, e adoro-te em minha alma, já que nada mais por ora me é possível.

Seria preciso que a alma tivesse o poder maravilhoso de criar momentaneamente uma expressão particular para cada um desses aspectos caprichosos e indescritíveis, com que a paixão se revela em nós durante o seu desenvolvimento crescente e indefinido.

Vi, já em ti, por uma encantadora antecipação, a mãe de família virtuosa, a esposa devotada e sem mácula, que hás de ser…

É tão cheio de idealidade e adoração o meu amor por ti…

Conclusão

O conceito de mulher amada para o R. forma o que George Lakoff (Women, Fire, and Dangerous Things, 1980) chama de “Cluster Model” (modelo em cacho) que preconiza para um modelo uma série de conceitos. No nosso caso, a mulher amada é o anjo, com todas as implicações que este conceito apresenta de bondade, pureza, guia, proteção, mensagem ( ver acima as metáforas “O amor é puro”, “O amor é luz, proteção, guia”). A mulher amada é a prometida de mãos brandas, cabelos perfumados, voz melodiosa, beijos úmidos que tocam a sua alma. Nunca o R. vai declarar que o seu corpo participa, deseja a matéria, pois a sua noiva continua sendo a mulher-anjo “…toda pureza, toda fé, toda virtudes, toda afetos, castos e sem mácula como o céu…” que, além disso, entende os seus problemas, mitiga a sua dor (ver acima as metáforas “O amor é dor. O amor cura”). A mulher amada será a esposa e a mãe com qualidades que já foram de sua mãe: “a mãe de família virtuosa, a esposa devotada e sem mácula”, sem deixar de continuar sendo o seu anjo, sem deixar de atraí-lo como sua confidente, enfermeira solícita e noiva formosa  de sua alma. (ver acima as metáforas “O amor é felicidade. O amor é abençoado pela família).

A METÁFORA DO AMOR NA CORRESPONDÊNCIA DE RUI BARBOSA (Parte 3). Nílvia Pantaleoni

A METÁFORA DO AMOR NA CORRESPONDÊNCIA DE RUI BARBOSA  (Parte 3)
A Língua como instrumento de interação verbal

O objetivo principal da língua, do ponto de vista do funcionalismo, é de estabelecer relações comunicativas entre seus usuários. O modelo de interação verbal de Simon Dik (The Theory of Functional Grammar, 1997) leva em consideração a intenção do falante que antecipa a interpretação do destinatário que, por sua vez, reconstrói esta intenção. É fundamental neste esquema, para que haja efetivamente a interação verbal, a informação pragmática do falante e do destinatário, que se orientam por regras pragmáticas que governam os padrões de interação verbal.  O usuário da língua é muito mais que um animal com uma capacidade linguística. Ele é dotado de uma série de outras capacidades que, juntas, lhe permitem um uso comunicativo eficiente e eficaz da língua.

Estas capacidades são:

a) epistêmica, que permite que ele derive conhecimento de expressões linguísticas, arquive-o, recupere-o e utilize-o, posteriormente, na interpretação de   outras expressões linguísticas;

b) lógica, que permite que ele, munido de parcelas de conhecimento, por meio do raciocínio, extraia outras parcelas de conhecimento;

c) perceptual, que permite que o usuário derive conhecimento de suas percepções e utilize-os tanto na interpretação quanto na produção de expressões linguísticas; e

d) social: o usuário sabe o que dizer ao seu parceiro, numa interação verbal, e como dizer para atingir seu objetivo comunicativo.

Simon Dik postula para uma teoria geral da gramática três tipos de adequação. São elas:

a) a adequação tipológica que exige que uma teoria gramatical seja capaz de prover gramáticas para línguas de qualquer tipo;

b) a adequação pragmática que permite a inserção da gramática numa teoria pragmática mais ampla da interação verbal; e

c) a adequação psicológica que se refere ao relacionamento  entre os modelos psicológicos da competência linguística e o comportamento linguístico do usuário. Estas duas últimas adequações são denominadas explanatórias, pois se referem aos modelos de produção que definem como os falantes constróem e formulam as expressões linguísticas e os modelos de compreensão que definem como os destinatários processam e interpretam estas mesmas expressões.

De acordo com o pensamento de J. L. Austin (How to do things with words, 1962),desenvolvido por John Searle (Speech Acts, 1969) nós nos comunicamos não por meio de proposições mas por meio de atos de fala, interpretáveis como instruções do falante ao destinatário para que este realize certas ações mentais a respeito do conteúdo da proposição, denominamos a estas instruções “frames”, ou molduras ilocucionárias.

A interpretação que a Gramática Funcional faz dos atos ilocucionários pode ser resumida da seguinte forma:

(i)            Há uma distinção básica entre a intenção ilocucionária do falante; a ilocução codificada na expressão linguística; e a interpretação ilocucionária do destinatário. O principal objetivo de uma comunicação bem sucedida é naturalmente que a intenção ilocucionária do falante seja igual à interpretação ilocucionária do destinatário. Mas pode haver uma diferença, e muitas vezes isso acontece, entre a intenção do falante, o conteúdo da expressão linguística e a interpretação do destinatário pois o conteúdo da expressão linguística não é sempre idêntico para os usuários da língua.

(ii)          Em relação à ilocução codificada na expressão linguística, observamos que todas as línguas apresentam sentenças que se classificam como declarativas, interrogativas e imperativas e que quase todas as línguas apresentam sentenças exclamativas. Estes tipos de sentença são considerados valores ilocucionários básicos.

(iii)         Interpretamos estas ilocuções básicas como instruções do falante para que o destinatário efetue determinadas mudanças em sua informação pragmática. Na sentença

a)            declarativa, há instruções do falante para que o destinatário inclua o conteúdo proposicional à informação pragmática;

b)            interrogativa, há instruções do falante para que o destinatário consiga a informação verbal especificada na proposição;

c)      imperativa, há instruções do falante para que o destinatário realize a ordem especificada na proposição

d)      exclamativa, há instruções do falante para que o destinatário inclua à sua informação pragmática que o falante considera que o conteúdo proposicional é surpreendente, inesperado ou que vale a pena ser notado.

As reflexões que apresentamos a respeito da metaforização e das funções pragmáticas na interação verbal subsidiam a análise do corpus. (Parte 4).

A METÁFORA DO AMOR NA CORRESPONDÊNCIA DE RUI BARBOSA (Parte 2). Nílvia Pantaleoni

A METÁFORA DO AMOR NA CORRESPONDÊNCIA DE RUI BARBOSA  (Parte 2)

A perspectiva funcionalista integra-se em uma teoria global de interação social, e a hipótese fundamental da Gramática Funcionalista é de que existe uma relação não-arbitrária entre o funcional – a instrumentalidade do uso da língua – e a gramática – sistematicidade  da estrutura da língua. Para os funcionalistas, a gramática é acessível às pressões do uso e a competência comunicativa é a capacidade que os indivíduos têm de usar e interpretar as expressões que codificam e decodificam de uma maneira interacionalmente satisfatória; dessa forma, a concepção da linguagem como atividade cooperativa entre falantes reais se apresenta como um de seus princípios básicos.

Metaforizar: compreendendo e vivenciando uma espécie de coisa no lugar de outra.

Os postulados da Gramática Cognitiva (Langacker,R. Concept, Image and Symbol,1990), que segue os princípios básicos do Funcionalismo, importantes para a nossa análise, são os seguintes: a) a linguagem não é independente, nem consegue ser descrita sem referência ao processamento cognitivo; b) o léxico, a morfologia e a sintaxe formam um continuum de unidades simbólicas divididas apenas arbitrariamente em componentes separados; c) as estruturas gramaticais não constituem um sistema formal autônomo, elas são inerentemente simbólicas em razão da estruturação e da simbolização convencional de conteúdo conceptual.

O sistema conceptual, por intermédio do qual pensamos e agimos, é fundamentalmente metafórico. Os conceitos estruturam o que percebemos através de nossos sentidos, como vivemos no mundo e como nos comunicamos. A metáfora faz parte de nossas vidas, concebemos o mundo por meio de metáforas, na realidade, a maior parte do tempo não temos consciência de as empregarmos. Não nos referimos ao emprego deliberado que os literatos fazem da figura retórica da metáfora que tem como objetivo principal, por meio de desvios do sentido literal, causar estranhamento no destinatário. A partir de  estudos realizados por Mark Johnson e George Lakoff (Metaphors we live by, 1980), Eve Sweetser (From Etymology to Pragmatics, 1990) e Ron Langacker ( Concept, Image and Symbol, 1990) entre outros, a respeito da linguagem e da cognição, podemos afirmar que pensamos metaforicamente durante a maior parte do tempo e que entendemos o mundo em que vivemos baseados, principalmente, em metáforas.  Nesse sentido, podemos afirmar que o nosso cérebro é construído pelo pensamento metafórico. Desenvolvemos nossas funções cerebrais superiores, isto é, elaboramos conceitos, a partir de elementos de nossas áreas perceptuais e motoras.

Observamos que o emprego da metáfora vai se aperfeiçoando e se manifestando por meio das expressões linguísticas, à medida que o usuário da língua se torna adulto, quando se trata da língua materna; e à medida que se torna proficiente no domínio de uma língua estrangeira. Halliday (An Introduction to Functional Grammar,1994) afirma que os modos de expressão metafóricos são característicos do discurso adulto. Existe uma grande variação de grau e de espécie de metáfora, mas não existe um discurso adulto que não se utilize desse recurso.

Existem metáforas que podemos considerar básicas pelo fato de se relacionarem com a orientação espacial, por exemplo: para cima/para baixo, dentro/fora, na frente/atrás, fundo/raso. São as chamadas metáforas organizacionais (ou espaciais)  Estas orientações espaciais são resultado do tipo de corpo que temos, que funciona da forma como funciona, no ambiente físico em que vivemos As metáforas espaciais fornecem a um conceito uma orientação espacial. Por exemplo: “Estar Feliz é Estar Para Cima”

Estas orientações metafóricas não são arbitrárias. Elas se baseiam em nossa experiência física e cultural.

Examinemos algumas metáforas espaciais do tipo “Para Cima/Para Baixo”.

1.Estar feliz é estar para cima; estar triste é estar para baixo:

a) Hoje estou pra cima.

b) Caí em depressão.

c) Ela vive se arrastando.

d) A noiva estava nas nuvens.

A explicação que podemos fornecer para o emprego de tais metáforas com base física é que a postura caída lembra tristeza, depressão, enquanto que a postura ereta sugere um estado emocional positivo.

2. Estar consciente é estar para cima; estar inconsciente é estar para baixo:

a) Ele está caindo de sono.

b) Ela está hipnotizada.

c) João pula da cama todos os dias.

A explicação que podemos fornecer para o emprego de tais metáforas com base física é que os homens e a maioria dos mamíferos dormem deitados e se levantam, quando acordam.

3. Vida e saúde estão para cima; doença e morte estão para baixo:    

a) Lázaro se levantou dentre os mortos.

b) Ele caiu doente.

 c) O paciente teve alta.

A explicação que podemos fornecer para o emprego de tais metáforas com base física é que uma doença séria nos obriga a ficar deitados e os mortos são enterrados deitados.

4. O bem e a virtude estão acima; o mal e a depravação estão abaixo:

a) Quando ela morrer, vai direitinho pro céu.

b) Nas profundezas do inferno, um dia ele vai parar.

c) O infeliz caiu no abismo da devassidão.

A explicação que podemos fornecer para o emprego de tais metáforas com base física e social é que as qualidades e os defeitos em nossa sociedade se concretizam por meio das pessoas: como uma pessoa feliz, saudável está para cima, também o bem e a virtude, pois estas qualidades estão relacionadas com a alegria o bem-estar.

Pelos exemplos apresentados, observamos que muitos conceitos fundamentais são organizados em termos de metáforas espaciais que não são notadas por estarem profundamente  enraizadas em nossa experiência cultural e física. Contudo, pelo fato de possuírem raízes culturais, elas podem variar de uma sociedade para outra. Estas metáforas são, em linhas gerais, estáveis diacronicamente, e são básicas para a construção de sistemas metafóricos mais elaborados como é o caso concreto das expressões linguísticas metafóricas empregadas por Rui Barbosa e por Monteiro Lobato para a conceptualização do sentimento amoroso e da idealização da mulher amada.

A METÁFORA DO AMOR NA CORRESPONDÊNCIA DE RUI BARBOSA (Parte 1). Nílvia Pantaleoni

A METÁFORA DO AMOR NA CORRESPONDÊNCIA DE RUI BARBOSA  (Parte 1)

O estudo tem por objetivo o levantamento dos modos metafóricos de expressão empregados nas declarações amorosas que Rui Barbosa e Monteiro Lobato fazem às suas respectivas noivas: dona Maria Augusta e dona Pureza, por intermédio de correspondência trocada quando se encontravam distantes delas. Além do mapeamento dessas declarações amorosas, que não pode ser feito sem a inclusão do “retrato” – também com características metafóricas – que os missivistas compõem da mulher amada, este estudo procura estabelecer de que forma os remetentes das cartas tentam antecipar a informação pragmática das destinatárias, tendo em vista conservar e alimentar o sentimento amoroso das mesmas.

Na fundamentação teórica, salientamos que uma concepção funcionalista da gramática valoriza o papel do falante na produção de seu texto; que o conhecimento de mundo, a cultura, de um modo geral se reflete não apenas no léxico, mas também na gramática, formando um continuum de expressões simbólicas; que concebemos o mundo usando a metáfora em tão larga escala que muitas vezes não temos consciência da existência de metáforas de nível básico que servem para categorizar o modo como percebemos e entendemos o mundo, a sociedade e os nossos sentimentos e, finalmente, como o falante utiliza estratégias para mudar ou manter a informação pragmática do destinatário em seu proveito. Na análise, demonstramos que as declarações amorosas e o retrato da mulher amada formam um sistema metafórico coerente com o conhecimento de mundo, as crenças, as suposições,    as opiniões, os sentimentos do falante (remetente das cartas) e do destinatário (destinatário das cartas) e que a função primária da interação verbal é a tentativa do falante de efetuar mudanças na informação pragmática do destinatário.

ATIVIDADE: ARQUIATOS DE FALA E LINGUAGEM PUBLICITÁRIA

ATIVIDADE: ARQUIATOS DE FALA E LINGUAGEM PUBLICITÁRIA

 

SELECIONE 20 MENSAGENS PUBLICITÁRIAS E CLASSIFIQUE-AS DE ACORDO COM OS ARQUIATOS DE FALA.

Émile Benveniste[1] associa aos três principais tipos de frases (declarativo, exclamativo, interrogativo) três principais funções pragmáticas do discurso, refletindo os três principais comportamentos do ser humano, quando fala: transmitir um elemento do conhecimento; obter uma informação; ordenar alguma coisa.

comportamento linguístico

tipo de frase

função pragmática

Transmitir um elemento do conhecimento

Declarativa

Falar, afirmar sobre o mundo

Obter uma informação

Interrogativa

Interrogar sobre o mundo

Ordenar alguma coisa

Imperativa

Agir sobre o mundo

 

São o ARQUIATOS de fala, correspondentes às três grandes categorias de atos primitivos, de onde todos os outros atos derivam.

A estrutura de muitas mensagens publicitárias pode ser classificada de acordo com o quadro acima. Dessa forma, observamos textos publicitários que afirmam (asserção); ordenam, apelam, convidam, pedem (ordem); e perguntam (interrogação) e já fornecem a resposta (asserção). Muitas vezes estes atos se complementam.

Exemplos: Asserção: TOP NEGÓCIOS. A Internet feita sob medida para o pequeno empresário.

        Ordem: PROJETE & DECORE. Use seu cartão Visa e pague em 6X sem acréscimo.

Interrogação: Sabe como simplificar sua vida num clique? Com o novo portal Banco do Brasil. www.bancodobrasil.com.br.

TIPO DE ATO MENSAGEM
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[1] Citado por Kerbrat-Orechioni em La Question, 1991.

Comentários sobre “A vertente grega da gramática tradicional” de Maria Helena de Moura Neves

NEVES, Maria Helena de M. A vertente grega da gramática tradicional. São Paulo: HUCITEC (Brasília): Editora Universidade de Brasília, 1987.

Os gregos definiam o homem como o animal que possui o “logos” (do verbo legein: ajuntar, colher, escolher, de onde contar, narrar, dizer). Para Platão, o pensamento é o diálogo (dialogos) interior que a alma mantém com ela mesma, enquanto o logos, o discurso, é o pensamento que emana da alma para o exterior sob forma de fluxo verbal. Aristóteles reafirma esse pensamento, confirmando uma concepção da linguagem como tradução do pensamento. Eis a base da gramática especulativa e, mais tarde, da gramática geral: a partir da suposição de uma universalidade do pensamento, podia-se deduzir uma universalidade da linguagem. O suporte teórico dos gramáticos de Port-Royal, como se vê, remonta a Platão.

A tradição gramatical no Ocidente iniciou-se com os gramáticos alexandrinos, que exerciam a função de bibliotecário-chefe da Biblioteca de Alexandria, a mais célebre da Antigüidade.Ela reuniu filósofos, matemáticos, pesquisadores nas mais diversas áreas, além de tradutores. O primeiro bibliotecário foi Zenódoto de Éfeso (325 – 234 a.C.). Primeiro editor crítico de Ilíada e da Odisséia de Homero, organizou uma lista com as palavras, sem possuir ainda critérios gramaticais para a revisão e fixação dos textos, raras que encontrou nos textos de Homero. Seu sucessor, Aristófanes de Bizâncio (257 – 180 a. C.) editou, além dos textos homéricos, outros autores clássicos como Anacreonte, Píndaro e, provavelmente, Sófocles e Ésquilo. Ele não chegou a construir um sistema gramatical, contudo sistematizou a acentuação e a pontuação, fez algumas considerações a respeito da etimologia, e, em relação às desinências, fixou as distinções de gênero, de caso e de número. Em seguida, Aristarco da Samotrácia (215 – 145 a. C.) continuou a tradição dos gramáticos alexandrinos, indo adiante ao reconhecer oito partes do discurso: nome, verbo, particípio, pronome, artigo, advérbio, preposição e conjunção.

Dionísio de Trácia (170 – 90 a.C.) considerado o primeiro organizador da arte da gramática na Antiguidade foi discípulo de Aristarco. Ainda preocupado em estabelecer a autenticidade dos textos homéricos, dedicou-se especialmente à pesquisa da analogia das formas sonoras, reservando, em seu manual, uma grande parte aos estudos da fonética. Estudou também, ainda que superficialmente, a morfologia, mas ignorou a sintaxe. Fica clara a influência de Dionísio sobre a gramática de João de Barros. O gramático português recorre aos mesmos procedimentos, apesar de não citá-lo:

— nas definições prevalecem os critérios formais, interferindo flexão e posição e função;

— na própria definição prenunciam-se classificações;

— faz distinção entre inventários abertos (em que há exemplos) e fechados (em que se apresenta lista exaustiva).

As definições apresentadas configuram uma consideração morfológica, ou, mais especificamente, morfossintática. A análise não se limita ao nível da palavra, desce ao exame dos elementos constitutivos vocabulares vai às relações intervocabulares, chegando à oração soluta. Acima de tudo, o que se encontra é a predominância do princípio da divisibilidade preconizada já pelos gregos.

Três séculos mais tarde, um outro bibliotecário da Biblioteca de Alexandria, Apolônio Díscolo (1ª metade do século II d. C.), além de ter preocupação com a fonética e com a morfologia, foi o primeiro  gramático a tratar da sintaxe das partes do discurso. Chegaram até nós os seguintes trabalhos gramaticais: Do pronome, Das conjunções, Dos advérbios e Da sintaxe das partes do discurso.

Em relação à língua latina, os principais gramáticos que retomaram e continuaram os trabalhos  gregos  são: Varrão (116- ? 27 a.C.), Donato (séc. IV) e Prisciano (séc. V). Dentre eles destaca-se Varrão que viveu em Roma e foi encarregado por César da organização de bibliotecas públicas. De suas 650 obras, apenas restaram três: Res rusticae, fragmentos de Res divinae e partes de um tratado de gramática, De lingua latina. Para Varrão a finalidade do estudo da gramática era o exercício do falar bem.

Inúmeras invasões bárbaras marcaram o início da Idade Média, culminando no séc. V, com a queda do Império Romano no Ocidente. Essas invasões não chegaram a dissipar as influências clássicas (gregas e latinas), principalmente reforçadas pela Igreja Católica que adotou o latim como língua oficial no Ocidente, que, evidentemente, perdera a pureza do clássico; enquanto que a língua oficial adotada pelo catolicismo ortodoxo, que se fixou na parte oriental do Império Romano, e perdurou até a queda de Constantinopla, no século XV, foi o grego. Dessa forma, a divisão do Império Romano em duas partes, com a sobrevivência da metade oriental, provocou uma ruptura cultural articulada em torno das duas línguas: o latim e o grego.

No Renascimento, com o desenvolvimento e a consolidação dos países europeus, a partir do final do século XV, surgiu a necessidade de se impor um saber lingüístico que garantisse a unidade pátria. As gramáticas abandonaram o latim e passaram a retratar as línguas particulares de cada nação, representadas pelo francês, espanhol, português, entre outras. Essas línguas surgiram basicamente a partir do latim, tomando cada uma características próprias pelo fato, principalmente, de terem sofrido a influência de diversos  substratos e superestratos.

Comentários sobre “História da Linguagem” de KRISTEVA, J.

KRISTEVA, J. História da Linguagem; trad. Barahona, M. M. Lisboa: Edições 70, 1969.

O panorama que Kristeva traça das representações e das teorias da linguagem é abrangente tanto temporal quanto espacialmente. Isso não significa que seu texto seja superficial, pelo contrário, ele é extremamente pertinente na seleção que faz dos principais aspectos da aventura humana que as inúmeras línguas e culturas testemunharam. Certamente isso se deve à preocupação da autora em refletir a respeito da linguagem a partir da história do pensamento. Ela afirma que as representações e as teorias da linguagem abordam sob o nome de Linguagem um objeto de cada vez sensivelmente diferente, sob diversos pontos de vista. São teorias que dão testemunho sobretudo do tipo de conhecimento particular próprio de uma sociedade ou de um período histórico. Através da história dos conhecimentos linguísticos, o que se destaca é a história do pensamento. Sua obra organiza-se em três partes, subdivididas em capítulos. A Primeira Parte trata dos conceitos de língua e signo linguístico, de linguagem, fala e discurso; a Segunda Parte apresenta um panorama histórico da relação do homem com a linguagem, refletindo a evolução do conceito de linguagem e dos estudos linguísticos, principalmente no mundo ocidental; e a Terceira Parte enfoca a linguagem em sua relação com outras áreas da atividade humana, introduzindo os estudos semióticos que pretendem dar conta, além da língua, de outras formas de linguagem. Kristeva (1969:375) conclui sua obra apresentando um cenário de crise que parece concretizar-se no início do século XXI, trinta anos depois: “O predomínio dos estudos linguísticos e, mais ainda, a diversidade babiloniana das doutrinas linguísticas – essa diversidade que foi batizada com o nome de crise» – indicam que a sociedade e a ideologia modernas atravessam uma fase de autocrítica. O seu fermento terá sido esse objeto sempre desconhecido – a linguagem.”

A IMPOSSIBILIDADE DE NÃO COMUNICAR

A IMPOSSIBILIDADE DE NÃO COMUNICAR

Extraído de  WATZLAWICK, P. et alii. Pragmática da Comunicação Humana. Trad. Álvaro Cabral. SP: Editora Cultrix, 1999.

Em primeiro lugar, temos uma propriedade do comportamento que dificilmente poderia ser mais básica e que, no entanto, é frequentemente menosprezada: o comportamento não tem oposto. Por outras palavras, não existe um não-comportamento ou, ainda em termos mais simples, um indivíduo não pode não se comportar. Ora, se está aceito que todo o comportamento numa situação interacional tem valor de mensagem, isto é, é comunicação, segue-se que, por muito que o indivíduo se esforce, é-lhe impossível não comunicar. Atividade ou inatividade, palavras ou silêncio, tudo possui um valor de mensagem; influenciam outros e estes outros, por sua vez, não podem não responder a essas comunicações e, portanto, também estão comunicando. Deve ficar claramente entendido que a mera ausência de falar ou de observar não constitui exceção ao que acabamos de dizer. O homem que num congestionado balcão de lanchonete olha diretamente em frente ou o passageiro de avião que se senta de olhos fechados estão ambos comunicando que não querem falar a ninguém nem que falem com eles; e, usualmente, os seus vizinhos “recebem a mensagem” e respondem adequadamente, deixando-os sozinhos. Isto, obviamente, é tanto um intercâmbio de comunicação como a mais animada das discussões. Tampouco podemos dizer que a “comunicação só acontece quando é intencional, consciente ou bem sucedida, isto é, quando ocorre uma compreensão mútua”.